quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Bem aventurados os que vivem o Natal


Foto: Um gesto de Natal
O final de ano é tempo favorável para revisão de vida e balanço da caminhada ao longo do ano que passou. Vilões tornam-se mocinhos, perseguidores dão trégua a seus perseguidos, os diferentes se dão as mãos, agnósticos tornam-se mais receptíveis aos fenômenos sobrenaturais, e aqueles que estavam distantes da vida espiritual voltam-se para a dimensão religiosa. Tudo graças ao espírito natalino! É o Natal a força mística que apazigua, reúne, congrega e sensibiliza uma humanidade cada vez mais marcada pela concorrência individualizante e pela vaidade. É na época do Natal que mais nos sensibilizamos com a dor do “outro”: com os desempregados e sem salário impossibilitados de terem uma mesa farta e digna na noite natalina, com a fome na África, com as crianças abandonadas, os que estão enfermos nos leitos hospitalares, os que sofrem vítimas de vícios. No Natal tomamos um choque de realidade e percebemos que o mundo é muito maior do que os problemas nos quais tropeçamos ao longo do ano em nosso quintal. Uma coisa é certa, porém: logo logo este compadecimento pelo sofrimento dos outros será encoberto pelos luminosos fogos do reveillon, embalados por refinados espumantes e, mais tarde, com a “alegria” do carnaval, que adormentará nossa consciência humana até o próximo Natal.


O Natal é um tempo de compadecer-se com os outros e conosco, como afirma o cântico do Magnificat, “Ele derruba os poderosos de seus tronos e eleva os humildes”. Foi isso que aconteceu na gruta de Belém: frustração para os poderosos e surpresa para os humildes. Quando esperavam o nascimento do menino Deus em um grande palácio, ornado de ouro, revestido de finas vestes e brocados, nasce na simplicidade da manjedoura de Belém, entre os simples pastores, homens do campo, envolto em faixas. O Natal frustrou a pretensão dos poderosos e soberanos e resgatou a dignidade dos simples e sofridos. Talvez seja esta a profunda mística que nos toca em toda época de Natal e nos faz lembrar dos que sofrem, porque Deus escolheu os mais simples para testemunhar a encarnação de seu Filho, não para excluir, condenar e abandonar os ricos e poderosos, mas para resgatar aqueles em que os ricos e poderosos excluíram, condenaram e abandonaram.


Nossa espiritualidade não pode esmorecer com o término da época natalina. Nossa consciência crítica, nosso compromisso com os pobres, famintos, sofredores, enfermos, encarcerados devem nos bem-aventurar durante todo ano, todo instante, toda vida. São estes os melhores presentes de Natal: dar pão a quem tem fome, água a quem tem sede, abrigo a quem tem frio, atenção a quem está preso ou enfermo.


Muito se falou de um livro que prega o encontro com Deus na Cabana. Ótimo e necessário! Mas, mais importante do que o encontro com Deus na Cabana, no meu quarto, no meu “quadrado” ou no meu “mundinho”, seja ele religioso ou não, é o encontro com Deus nos orfanatos, nas penitenciárias, nas regiões empobrecidas, nos asilos, casas de recuperação, hospitais. O encontro com Deus no irmão que sofre. Aí esta a Cabana.


Na noite de Natal Deus armou sua Cabana na simplicidade de Belém. Lá estavam Maria, José, animais e homens do campo. Hoje ele continua a armar sua tenda entre nós. Nós o reconhecemos, adoramos, nos compadecemos com ele e o festejamos. Mas tão logo desarmamos a tenda e voltamos à rotina da vida, não abandonemos os propósitos do Natal. Sejamos daqueles que permanecem firmes, pois sabem que sempre é Natal quando se vive a bem-aventurança.

Vilmar Dal-Bó Maccari

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O Chique para Deus: a beleza de ser simples

Foto: Traços da simplicidade

É impressionante o tempo de vida que investimos para manter nossa “boa aparência”. O problema está não na boa aparência, mas confundir exagero, ostentação, disfarce, com boa aparência.
São necessários cuidados com o corpo, cabelo, vestuário, enfim, com tudo aquilo que nos faz parecer melhores para nós mesmos e para os outros. É salutar e agradável ao homem valorizar sua condição humana e zelar de seu corpo com cuidado, aprimorando com responsabilidade a qualidade de vida: esse é o segredo da auto-estima e da valorização do dom da vida. Não somos refugos da história, somos flores no jardim da vida!

Graças ao amor de Deus e sua perfeição no ato criacional, temos consciência de que nos cabe zelar e proteger toda a quase infinitude da criação divina. Este ato de preservação e cuidado deve acontecer de forma saudável e equilibrada, evitando-se cair no extremo da ditadura da estética, da idolatria do corpo e do culto obsessivo pelo prazer. Conservar a singeleza divina presente no ato criador é salvaguardar o projeto de Deus. Muitas vezes confundimos beleza com o excesso de vaidade e acabamos caindo nas amarras do exagero que, por sua vez, leva-nos ao desequilíbrio funcional e, quando percebemos, somos vítimas da neurose compulsiva de brilhar. O belo é simples. É até um princípio da ciência: entre duas opções, escolha-se a mais simples.

Toda mística de Jesus passa pela simplicidade. A beleza dos lírios dos campos. A pureza das crianças. O óbolo da viúva. Jesus encontra a beleza na simplicidade das relações e enaltece os pequenos, singelos, simples e puros de coração. Assim nossas relações de convivência devem ser: pautadas pela beleza da simplicidade. Ser simples é que é “ser chique”. É assumir a própria história de vida, não criar personagens ilusórios e inconsistentes que ofusquem o brilho do ato criador.
A beleza das relações não está nas falácias da moda, tão vulneráveis e passageiras, mas na simplicidade de assumir o concreto da vida.

O ser humano foi criado para a felicidade. Para ele é necessário evoluir, aprender, progredir. Todo gesto saudável em favor realização humana agrada a Deus e valoriza o ato criador. Seria muito enriquecedor para todos se a beleza da simplicidade e da pureza presentes na criação sejam sempre a etiqueta dos relacionamentos humanos, a nobreza que cativa.

Nada mais “chique” do que ser fiel ao projeto de Deus. A simplicidade é a maior beleza derramada na história: dá finos tratos aos homens e lapida seus relacionamentos. Somente aqueles que descobriram a riqueza de ser simples na vida encontraram, na própria vida, a simples razão de viver: tornaram-se “chiques” aos olhos de Deus.

Vilmar Dal-Bó Maccari

sábado, 20 de novembro de 2010

Ganhar o mundo, perder a vida

Foto: vida em cor e fios

O que adianta ao homem ganhar o mundo e perder a sua alma? (Mateus 26,16).

Do que adianta ao homem toda a glória e poder do mundo, fama, títulos, honrarias e fortunas se não tiver com quem compartilhar suas conquistas? Do que vale o mais belo dos palácios, de arquitetura e decoração refinados, se não houver quem o visite? E o carro mais veloz do mundo, da mais alta tecnologia, se não tivermos a quem dar carona? E o tratamento mais especializado, os melhores profissionais, o mais completo plano de saúde, se na hora da dor não temos alguém que nos dê a mão? Do que adianta medir a vida, o futuro e as relações de convivência pela ótica do dinheiro, da fama e do poder, se no fim da vida dependeremos somente da graça de Deus para nossa salvação, e da boa vontade dos homens para fecharem nossa sepultura?

Todos corremos o risco de passar pela vida com o objetivo apenas de ganhar o mundo: conquistar o melhor emprego, ser admirado, ter poder de influência, alcançar objetivos: família, casa, amigos. Nesta busca incessante do “acontecer” percebemos o risco de algumas vezes ganhar o mundo e muitas outras vezes perdermos a vida no mundo.

Quando chegamos ao ponto de pensar que nossas conquistas terrenas, patrimônios, cargos e salários são tidos como penhor de nossa salvação e garantia de felicidade futura, chegamos à maior miséria humana: a anulação da vida espiritual, da vida humana.

Ninguém ama alguém pelo poder. Ninguém ama ninguém pelo dinheiro. Ambos despertam no homem admiração, encantamento, respeito, ciúme, inveja, cobiça, relações de interesses, até mesmo servidão, mas o poder e o dinheiro não são capazes de despertar o amor.

O amor tem sua origem na gratuidade. Amor é gratidão, liberdade, desapego, austeridade. Sentimento sem medida. Quem ama está livre da correção monetária, do índice inflacionário, do dissídio anual, do metro quadrado, do grau outorgado. Quem ama, ama sem medida. Não pergunta quando e quanto. O amor não tem preço, tempo e espaço. Somente quem ama é capaz de esvaziar-se de si para encher o próximo.

É o amor responsável por situações desconcertantes. Somente ele nos leva a vivermos juntos e felizes em um apartamento apertado de um ou dois dormitórios. É o amor que nos faz ficar anos com aquele mesmo carro, desfilar com ele para cima e para baixo, dando carona para todos sem constrangimentos. É o amor que nos faz acompanhar a pessoa querida na fila do SUS, visitá-la em sua doença, preparar-lhe uma canja gostosa. Somente o amor suporta limites. O dinheiro, o poder e a fama enchem os olhos, despertam cobiça, causam interesse, mas é o amor que transforma as relações.

Há quatro anos tive a oportunidade de cuidar de um sacerdote de 82 anos de idade. Com ele estive até sua morte. Dei-lhe refeições, banho, medicamentos, levava-o para passear, partilhávamos a vida, rezávamos juntos. Muito conversávamos sobre a sociedade, a fé e a vocação. Certo dia, perguntei por que ele insistia em permanecer conosco, pois tinha condição financeira de pagar enfermeiros e morar em uma casa com maior conforto e adaptação para sua enfermidade. Ele respondeu-me: “... porque lá eles não vão me tratar com amor...”.
Naquele momento entendi que eu estava mais do que cuidando de um padre idoso: eu o estava amando. Em vez de procurar o conforto, a técnica e o tratamento especializado ele preferiu ficar próximo daqueles que mais o amavam, e fazíamos isso na gratuidade. O dinheiro do padre nada valia: o que ele queria era ficar conosco, ficar no amor, e ficou até a madrugada de 28 de outubro de 2007.

Aprendi com esta experiência que o amor é o que conta na vida. E é com o amor que nós devemos contar. Foi o amor que me manteve firme ao lado daquele sacerdote até o fim de sua vida, e é somente o amor que trará para perto de mim aqueles que amo quando chegar o meu fim. Ninguém visita, dá carona, ou prepara uma canja gostosa a quem não ama, a não ser por obrigação. É o amor o maior bônus da vida.

Vilmar Dal-Bó Maccari

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Emaús celeste

Foto: Emaús enfim, sou eu

Nos dias quatro a cinco de novembro de 2010 aconteceu em Florianópolis o 67º. curso do Emaús Masculino da Arquidiocese de Florianópolis. Um Emaús histórico! O primeiro Emaús sem a presença do Monsenhor Francisco de Salles Bianchini, orientador emérito do Movimento de Emaús. Foi o primeiro Emaús sem o padre Bianchini ponderando, sugerindo e orientando a dinâmica do curso mas, desta vez, contávamos com a presença espiritual de Monsenhor Bianchini no Emaús celeste, intercedendo por cada jovem cursista, pela equipe de trabalho e por todos que passaram pela comunidade de Emaús.
O Emaús sem monsenhor Bianchini aconteceu de forma natural, marcado pela saudade, pelo sentimento de ausência e pelas recordações de carinho, doação e zelo dedicadas ao longo se sua vida pelo Emaús.

Com este curso é inaugurada a nova geração de jovens do Emaús, jovens que não conheceram o Padre Bianchini, que não tiveram a oportunidade de ouvir sua voz forte, contemplarem seus olhos azuis brilhantes e cheios de lágrimas quando, comovido, falava-nos de Jesus. Surge a geração Emaús do “ouvi falar”. Ouvem falar de um padre que doou sua vida e seu sacerdócio pela causa da juventude, que formou tantos jovens na escola do Evangelho e que soube curar feridas e apontar caminhos em uma época muito marcada pelo relativismo.

Padre Bianchini continuará zelando, cuidando e orientando o Movimento de Emaús, e agora de uma forma muito mais plena. Ao lado do Monsenhor Calazans, fundador Nacional do Movimento de Emaús e do Padre Carlos Rogério Groh, esperamos que Monsenhor Bianchini viva o Emaús celeste, um Emaús infinitamente maior do que aqueles três dias inesquecíveis que marcaram a vida de tantos jovens na terra.

É um Emaús de grandeza incomparável. Lá não há palestras sobre relacionamentos, fé e esperança; lá se vive o amor em Deus. Uma pequena fração do que o Padre Bianchini nos ensinava aqui na terra e que já era suficiente para revermos a nossa vida e experimentarmos o amor de Deus.

Vilmar Dal-Bó Maccari

sábado, 13 de novembro de 2010

Amizade: chegarmos juntos

Foto: Quando formos grandes

Já não vos chamo servos, mas amigos (cf. Jo 15,15).

A amizade é uma forma de amor. Em primeiro lugar requer liberdade e conduta ética de comportamento. Nenhuma forma de amor respeita tanto a liberdade do outro como a amizade que chega a ponto de extrema delicadeza sem exigir explicações. A amizade difere das demais formas de paixões e amores porque escolhe seus objetivos com critérios morais e se comporta moralmente em relação a eles. Amar, escrevia Santo Tomás de Aquino, é querer o bem do outro. A amizade acontece quando queremos a felicidade de alguém e este corresponde a nosso benquerer.

Do amigo esperamos que compartilhe a imagem que temos de nós mesmos ou, pelo menos, que não se afaste dela. Dois amigos devem ter imagens de reciprocidade e semelhança. Não idênticas, naturalmente, pois então não haveria nada para descobrir, mas sem excessivas dissonâncias. De um amigo, portanto, é de se esperar que não nos entenda mal. Se isso acontece, é um alerta ao relacionamento. Um amigo pode discordar de nossas convicções de fé, visão política, modo de conceber o mundo, mas ele é quem vai entender-nos com maior facilidade em relação aos outros, pelo simples fato de ser nosso amigo. É ele que mais conhece nossa história de vida, nosso meio cultural, nossa formação, nossas limitações e nossos traumas. É o amigo que nos conhece a partir do que somos, diferentes dos outros que nos julgam a partir do que aparentamos. A confiança, numa relação de amizade, é muito maior do que as diferenças. O amigo não é um guru que detém a verdade: é um chegar juntos à mesma conclusão a partir de pontos de vista diferentes.
Nos relacionamentos existe sempre um julgamento, este é inerente a toda relação. Culpado ou inocente? Geralmente a amizade absolve. Perdoa. Se há perdão, o perdão é definitivo. Ele não rotula. A amizade contém uma substância moral muito forte: uma vez perdida a confiança, está perdida em definitivo. Somos moralmente exigentes com os amigos. Muito mais exigentes do que com outras pessoas. A amizade possui um forte conteúdo ético que exige reciprocidade. A amizade, porém, não é apenas estima, admiração, confiança. É também amor. A amizade é a forma específica de amor que tem por objeto uma pessoa que apreciamos e que se comporta de maneira eticamente correta, pelo menos conosco.

Do amigo apreciamos as boas qualidades intelectuais, artísticas, morais. A simpatia, a vivacidade, a solicitude para conosco e para com os outros. Desejamos sempre o melhor para o nosso amigo: o melhor estágio, o melhor emprego, oportunidade, tratamento, presente. No amigo não vemos um rival, queremos vê-lo bem e nos alegramos com o seu sucesso. O sucesso dele é também um pouco do nosso sucesso.

Somente um amigo nos vê por aquilo que somos. Reconhece uma qualidade, uma virtude que estava ali perfeitamente visível, mas que outros não apreciavam porque são indiferentes. Um amigo nunca é indiferente com a nossa dor, nosso sofrimento e, principalmente, nossa alegria. É aquele que intui e invoca a parte melhor de nós: a parte mais bondosa, sincera e amável.

A amizade, uma forma de amar

A amizade é, portanto, uma forma de amar: o amor, então, não é uma inclinação espontânea, um ímpeto da paixão, um sentimento. O amor é um imperativo ético, uma escolha da vontade. O amor é uma decisão humana, e o cristianismo nos ensina que o amor ao próximo é um dever. Eu decido amar! Talvez por isso, Jesus chama seus colaboradores de amigos. Os amigos não são dois iguais que se tratam de maneira igual. São iguais que se tratam de modos personalizados. A amizade é identificação e diferenciação; semelhança e afinidades, projetos e qualidades em comum que alegram o outro.

Em minha experiência de vida sempre busquei uma espiritualidade construída nos relacionamentos, de forma mais concreta, pela ajuda ao próximo e pela construção de amizades saudáveis. Amizades construídas na gratuidade, no zelo e na verdade, sem posses, mentiras, traição e interesses. Foi assim desde os tempos escolares. Ora fui compreendido, ora fui incompreendido, mas nunca deixei de acreditar nas relações de serviço transformadas em amizade.

Acostumei-me desde cedo a conhecer os gostos de meus amigos, seu prato preferido, a música predileta, a leitura agradável. Algumas vezes os presenteei repentinamente com um livro ao lembrá-los no corredor de uma livraria, com um CD ao ouvir seu cantor favorito, com sinais visíveis do amor que se compromete em transformar relações de coleguismo em amizade.

Quando concluía as idéias deste texto, perguntei a um colega de sala de aula, a quem admiro por sua capacidade reflexiva sobre as dificuldades de conviver com o diferente, se é possível aprender com o diferente. Depois de alguns instantes de silêncio ele me respondeu que sim, desde que este alguém “diferente” tenha algo para nos oferecer e nos ajude a crescer, ou ainda, que esteja aberto para a dinâmica da vida. Sábias palavras, e cheias razão!
Talvez isso seja parte da espiritualidade da amizade, quando não temos esse “algo a mais” para oferecermos, seja intelectual, cultural ou social para as pessoas que amamos: oferecemos aquilo que aprendemos na observação delas para sentir o que as faz felizes: um livro, um CD, uma flor, uma palavra amiga. Buscamos ser úteis. É uma forma sutil de dizer: “se não tenho ou não sou aquilo que você merece, receba aquilo que mais admiro em você.”
Ao longo desta espiritualidade que passa pelos relacionamentos não temo em transformar relações funcionais em amizade. Temo, sim, em correr o risco de esquecer meus amigos e voltar a torná-los funcionais à nossa relação.

Vilmar Dal-Bó Maccari

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Meninos não choram: será?

Foto: Lágrimas de homem feito

Disse Maria por ocasião da morte de seu irmão Lázaro: ”Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”. Quando Jesus a viu chorar, e os que estavam com ela, comoveu-se interiormente e perturbou-se. Ele perguntou: “Onde o pusestes?” Responderam: “Vem ver, Senhor!” Jesus teve lágrimas. Os judeus então disseram: “Vede como ele o amava!” (Jo 11, 32-36)

É confortador sabermos que Jesus, ao ver o amigo Lázaro morto, comoveu-se e chorou. As lágrimas de Jesus diante da sepultura de Lázaro tiram dos ombros dos homens modernos o ritual imposto pela sociedade de que homens não choram. As lágrimas de Jesus exaltam sua humanidade repleta de sentimentos, afetos e amizade. Jesus, homem-Deus, ao chorar em público assume para si aquilo que os homens ao longo da história insistem em esconder a “sete chaves” dentro do coração: o medo, a insegurança, a saudade, os sentimentos. Jesus revela para o mundo o que insistimos em esconder dentro do peito.

No curso da história percebemos que os sentimentos estão intrinsecamente alinhados ao conceito do que é belo. Na cultura grega, o belo representava a força e a superação dos limites humanos: o homem belo era, para os gregos, aquele que possuía corpo atlético, bem definido. Já no Império romano o belo era sinônimo de poder e dominação. Em Jesus Cristo, nem a força dos guerreiros gregos e nem o poder de dominação dos tiranos romanos encontram abrigo. O belo, aos olhos de Jesus encontra sua representação na pureza das crianças, na beleza dos lírios do campo, no pecador arrependido, no faminto saciado. O belo, aos olhos de Jesus, desconcertava sua época e se revela mensagem profética para nossos tempos: a beleza, a seus olhos, consistia na capacidade de olhar o diferente, o renegado pela vida, o restolho da humanidade e, ali, encontrar o mais belo: a essência das coisas e das pessoas.

Foi através desta capacidade de enxergar além das imagens, das aparências e dos preceitos que Jesus Cristo conseguiu direcionar seus olhos, carinho, atenção e misericórdia para os sofredores, as prostitutas, os leprosos, os cegos, os coxos, as viúvas e os pecadores. A beleza, para Jesus, não estava na arquitetura dos grandes palácios, nas vestes luxuosas dos governantes, nos banquetes da elite de seu tempo, nos fortes combatentes do Império. Para Jesus, o belo era devolver a dignidade para aqueles que tinham sido espoliados pela vida e tornaram-se o resto do povo de Israel.

Nossa época é tiranizada pela ética de uma discutível estética, porque subordinada a interesses comerciais. Ética que dita os padrões de conduta e as relações da sociedade moderna. Todas as jovens que estão fora das medidas do padrão de mulher alta e extremamente magra, são consideradas “gordinhas”. Mulheres que não chegaram ao casamento aos trinta anos são consideradas “encalhadas”. Os homens também não estão livres desta ética volátil. Todos os jovens que se dão direito aos sentimentos e choram são taxados de fracos e medrosos. O homem acima de cinqüenta anos é considerado velho demais para o mercado de trabalho.

Assim se estabelecem as relações quando a estética, a beleza da moda determinam os padrões de conduta e relacionamentos. Gordas, encalhadas, fracos, medrosos são o resto do Israel de nossos tempos.

A beleza se expressa na transparência dos sentimentos
Jesus não se deixou conduzir pela a ética da estética, da aparência e do superficial. Pelo contrário, não firmou seu conceito de belo na realidade histórica de seu tempo. Iluminou sua conduta, sentimentos e julgamentos por princípios morais não legalistas, mas vivificantes. Promoveu a vida e a felicidade em plenitude.

Ainda hoje ouvimos expressões do tipo: “homens não choram”, ou ainda “chorar é coisa de mulher”. Nossas crianças continuam sendo educadas na pedagogia do endurecimento.

Jesus nos ensinou que homem chora, sim! E chora porque é homem! E somente um homem na plenitude máxima de sua condição é capaz de comover-se com a dor de um filho que sofre, com sua esposa que passa por tribulações, com um amigo de longa data ceifado inesperadamente da vida. Somente um verdadeiro homem é capaz de recordar sua infância, as lembranças de seus pais, o convívio com os irmãos e emocionar-se com uma música que remeta a amores do passado.

As lágrimas derramadas não são atestado de carência afetiva, de fraqueza crônica, de sexo frágil. São sinais de sentimentos, de cumplicidade, de saudade e de amor. A divino-humanidade de Jesus chorou, e com ela chora nossa humanidade: choro que lava os sentimentos, purifica a alma e alivia o coração.

Acredito que o mais vergonhoso na biografia de um homem não é chorar, mas sim, recordar o nome das inúmeras pessoas que ele fez chorarem por sua insensibilidade e dureza de coração. O honroso para a biografia de um homem não está nas vezes em que sorriu, mas nas vezes em que fez alguém sorrir. Assim é a vida, lágrimas no sofrimento, lágrimas na alegria. As lágrimas acompanham o homem ao longo de sua vida. Aos homens lhes restam duas opções: um lenço para secar as lágrimas de sua humanidade ou construir um castelo de pedras onde se esconder de sua própria humanidade. Cada homem escreve sua biografia.

Vilmar Dal-Bó Maccari

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Ideal de suas vidas

Foto: Missa no CAP - 2009

“Eu desejo profundamente que vocês façam D’Ele o ideal de suas vidas.”
Monsenhor Francisco de Sales Bianchini

Durante trinta e quatro anos de sua vida, Monsenhor Francisco de Sales Bianchini esteve à frente do Movimento de Emaús na Arquidiocese de Florianópolis. Uma vida dedicada à exigente evangelização da juventude e de seus familiares. Sempre envolvido em cursos e retiros, quando concluía suas palestras com os olhos cheios de lágrimas, Monsenhor Bianchini costumava dizer: “Eu desejo profundamente que vocês façam D’Ele (Jesus) o ideal de suas vidas.”

Ao longo destes anos, aproximadamente 8.000 jovens, onde me incluo, tiveram a oportunidade de ouvir e aprender com seus ensinamentos. Pelos bancos do curso de Emaús passaram inúmeros jovens: jovens universitários, jovens simples, trabalhadores, estagiários, filhos de governadores, ateus, crentes e descrentes. Diferentes jovens, diferentes perspectivas de vida, mas uma mesma reação: a emoção e a comoção que sentiam ao ouvirem Monsenhor Bianchini de forma tão realista, como se fosse testemunha ocular, narrar a vida de Jesus Cristo. Era difícil conter as lágrimas neste momento de encontro. Padre Bianchini nos atraía com sua emoção e nos levava para dentro do Evangelho.

Homem culto, de voz forte e posições firmes, não transgredia quando o assunto era moral, mas, se “derretia” todo quando fala sobre o amor de Deus.

Aprendi muitas coisas com Monsenhor Bianchini: ter fé firme e não esmorecer, buscar argumentos sólidos que sustentem a minha fé, não ser persuadido por doutrinas incompletas, o respeito pela Eucaristia, evitar participar da Missa de bermuda, ter uma vida saudável e equilibrada, aproximar-se do Sacramento da Reconciliação, valorizar e respeitar os amigos tecendo uma rede de relacionamentos saudáveis.

É claro que tínhamos alguns pontos em que discordávamos, principalmente na eclesiologia e em alguns fundamentos da teologia latino americana, mas, meu respeito por seu legado sempre foi maior do que minha discordância.

A atual geração de Florianópolis tem muito a agradecer ao Monsenhor Bianchini: não andamos 1 km nesta cidade sem cruzarmos com alguém que o conheça e tenha uma lembrança sua, seja uma homilia polêmica, uma “bronca”, uma palestra inesquecível, ou que participou do curso de Emaús.

A cidade de Florianópolis entrega a Deus um brusquense agraciado com o Título de Cidadão Florianopolitano, honrado com a Medalha Anita Garibaldi pelos bens que prestou à sociedade na evangelização da juventude. Mas seu maior reconhecimento será por ter cumprido fielmente o seu papel na terra: fazer de Jesus o ideal de muitos Jovens.

Monsenhor Bianchini costumava dizer que todos os dias, pela manhã, lhe vinham dois sentimentos: o primeiro de agradecimento por tudo que Deus lhe deu: vocação, saúde, casa, amigos e os jovens e, o segundo, o medo de não ter correspondido à altura.

Jamais conseguiremos pagar tudo aquilo que Monsenhor Bianchini nos fez na gratuidade. Talvez, possamos continuar zelando por seu carisma: “Que os jovens façam de Jesus o ideal de suas vidas.

Obrigado, Monsenhor Bianchini!
Adeus até DEUS!

Vilmar Dal-Bó Maccari

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Manjedoura urbana: a hospedaria do abandono

Foto: Faces de uma mesma história

“Envolveu-o em panos e o deitou numa manjedoura,
pois não haviam encontrado lugar na hospedaria.”
(Lc. 2,7).

Lucas, em seus Evangelho da Infância, descreve com muita riqueza de detalhes o mistério da encarnação e o nascimento do menino Jesus. Comumente estes textos referentes à anunciação e ao nascimento do menino Jesus são meditados e rezados pela Igreja no tempo litúrgico do advento que, de forma pedagógica e doutrinal, preparam os cristãos para a festa do Natal: a chegada do menino Deus entre nós.

A grandeza e a mística que percorrem esses textos, porém, não se esgotam nas semanas que antecedem o Natal. Cada vez que meditamos o nascimento do menino Jesus, qualquer que seja a época do ano, nos defrontamos com um dos mais belos e complexos mistérios da vida cristã: Deus armou sua tenda e veio habitar entre nós. É a salvação, o amor, a misericórdia e a justiça que entram na história, no tempo e no espaço. O divino assume a condição humana e, na noite de Natal, Deus se revela de maneira pobre, em uma pobre gruta, num pobre menino: no menino de Nazaré encontramos a face humilde de Deus revelada à humanidade.

Essa compreensão, num primeiro momento, pode até parecer pura especulação teológica com certas doses de ideologia e até mesmo esvaziar alguns elementos históricos para a prática da vida espiritual orante, mas, se ousarmos alargar os horizontes de nossa compreensão, perceberemos que a condição divino-humana assumida na noite do Natal se atualiza a cada dia no concreto da vida; e que a estrela que guiou os Reis Magos até a gruta de Belém, continua guiando-nos até os pobres de nosso tempo.

Nos grandes centros urbanos existem inúmeras grutas pobres de Belém: orfanatos, abrigos, casas de acolhimento e creches. Todas abarrotadas de crianças abandonadas, sem muita infra-estrutura e carentes pela falta de recursos e apoios, mas, mesmo assim, na pobreza de Belém, são sempre solícitas em acolher um pequeno abandonado quando este bate à sua porta. Ali se encontram meninos e meninas pobres envoltos em panos, crianças que não conseguiram encontrar lugar em uma hospedaria familiar, um direito de toda criança. A estas sobrou a manjedoura de Belém.

São filhos de “Marias”: Maria das Dores, Maria Mãe Solteira, Maria da Aflição, Maria do Abandono, Maria do Desemprego, Maria da Droga, Maria da Prostituição, Maria do HIV, Maria que está no Céu. Filhos de “Josés”: José Operário, José Desempregado, José Carcerário, José Fugitivo, José Assassinado, José Alcoólatra, José Falecido.

Estas grutas de Belém estão lotadas de meninos não-Deus, mas de meninos filhos de Deus, que esperam por uma estrela do Oriente que conduza até eles bondosos e acolhedores Reis Magos. Não esperam ouro, incenso e mirra, muito menos vídeos-game, bicicletas e computadores: aguardam um lar, uma família, uma Maria de Nazaré, um José justo e virtuoso. São crianças nascidas na história, vítimas da história, presentes no tempo e no espaço.

O presépio de Belém é a realidade de nossas casas de adoção. Não precisamos esperar o Advento, montar o presépio, acender as luzes da árvore de Natal para sentirmos o espírito natalino. O presépio real acontece a cada dia. Inúmeras estrelas do Oriente apontam para esta situação de abandono. Não precisamos esperar o dia 25 de dezembro para mergulharmos na mística do Natal: é natal todo dia nas grutas urbanas de Belém.

Vilmar Dal-Bó Maccari

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Orelhinhas-de-burro: o bolinho do amor

Foto: Medida certa
Carrego comigo a permanente lembrança de idosa e piedosa senhora que despertava todos os dias logo ao nascer do sol, inclusive nos domingos, feriados e dias santos para preparar “orelhinhas-de-burro”, espécie de bolinhos de chuva fritos, ideal para o café da manhã. Os ingredientes da receita eram muito simples: algumas medidas de trigo, açúcar e água, tudo bem misturado, amassado, fritos em óleo quente e passados na canela com açúcar. Mesmo sendo uma receita de tamanha simplicidade, as “orelhinhas-de-burro” eram muito saborosas. Toda gordura absorvida no processo de fritura era cuidadosamente escorrida de forma artesanal em pedaços de papel-presente ou em sacos de pães vazios. Os guardanapos, sinal da modernidade, não tinham alcançado o processo de preparo.


Dado o devido reconhecimento ao delicioso sabor das “orelhinhas-de-burro” é impossível não recordá-las sem lembrar-se de outros sabores e sentimentos que as impregnavam. Comer aqueles bolinhos era mais do que deliciar-se com o gosto da canela enxertada no trigo, umedecida no óleo, mas sentir tudo o que ele simbolizava. Era a demonstração pura de carinho e dedicação de quem se punha a servir preocupada com a satisfação e o prazer do outro. Um gesto de pontualidade e compromisso materno, garantia de mesa posta e acolhedora: um mimo constante.


Aqueles bolinhos não eram frutos de uma obrigação, mas de um gesto concreto de amor. Amor não platônico, reduzido aos beijos, elogios e afagos, mas amor concreto, comprometido, permanente e gratuito. Amor que alimenta, testemunha e sustenta a alma.

A beleza da espiritualidade é esta: perceber no cotidiano da vida os sinais de Deus agindo no concreto da vida. É no humano das pessoas que experimentamos Deus atuando em nosso favor. Somente mãos generosas, conduzidas por nobres virtudes e sentimentos de tamanha proporção são capazes de transformar trigo, açúcar e água em bolinhos repletos de amor.

Fazer “orelhinhas-de-burro” em situações eventuais, seguindo as medidas da receita é muito prático e, com o mínimo de instrução, qualquer pessoa consegue prepará-los. Porém, fazer “orelhinhas-de-burro”, diariamente, na gratuidade, seja inverno ou verão, pensando no sustento do outro, permitindo-lhe uma refeição com novidade e que atenda ao paladar de quem o degusta é muito mais do que fazer bolinhos: é amar fazendo bolinhos.

Quando somos conduzidos pelo amor de Deus e deixamo-lo conduzir nossa rotina, amamos fazendo e fazemos amando. Assim deve ser a nossa espiritualidade, a espiritualidade da santificação. Somos santos não porque fizemos bolinhos perfeitos seguindo fielmente as receitas, as normas e as leis, mas, somos santos porque fizemos bolinhos com carinho, com amor, preocupados com o bem-estar e com o propósito de saciar a fome do outro. Essa prática de amor, por sua vez, não invalida as receitas, as normas e as leis, mas nos ensina que bolinhos sem amor são apenas bolinhos.


Esta senhora idosa e piedosa deixou-me a receita das “orelhinhas-de-burro”, mas, acima de tudo, uma receita de amor. Ainda que estejamos famintos na saudade, e desorientados nas medidas de trigo, açúcar e água, sabemos que a consistência, “ponto”, “liga” para nossa massa nascem do amor, somente do amor, e este nos saciará.


Vilmar Dal-Bó Maccari

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Faz tempestade: chove lá fora

Foto: nervosismo

Diz um velho ditado popular: “Depois da tempestade sempre vem a bonança”. Com base neste sábio dito popular, tomo a liberdade de complementá-lo: “Depois da tempestade sempre vem a cbonança e, com ela, o sentimento de alívio”.

Em tempo de tempestade somos lançados nas turbulências da vida, deparamo-nos com as nossas inseguranças, fragilidades e incertezas: somos tomados pelos mais íntimos sentimentos de medo e abandono. É durante a tempestade que imaginamos submergir nos problemas e nas situações aparentemente desalentadoras. Por mais que tenhamos consistência e estrutura emocional, intelectual e espiritual para enfrentarmos e atravessarmos as tempestades da vida, esta sempre desnudará algumas de nossas fragilidades humanas: chove lá fora e se faz tempestade em nosso interior. As turbulências externas provocam uma verdadeira tempestade interior, são os momentos denominados de crises, provações, desafios e, para os místicos, as chamadas “noites escuras”. Não há como prever o tempo e o período de chegada da tempestade. O certo, porém, é que todos, mais cedo ou mais tarde, com maior ou menor intensidade, passaram por ela na vida. Relatos de santos com São João da Cruz e Madre Teresa de Calcutá revelam períodos de “noites escuras” em suas vidas durante intensa busca de perfeição e santidade vivida na caridade e na contemplação. O ser humano experimenta o limite da turbulência na condição de viver.

Voltando ao sábio dito popular: este nos ensina que, após a tempestade, sempre vem a bonança. O que vem a ser esta bonança? Seria o silêncio compassivo de aceitação da derrota diante das turbulências da vida? Ou, quem sabe, o acomodamento, a inércia e o escondimento para não enfrentar uma nova crise? Não! O tempo de calmaria nada tem a ver com desolação, aceitação do fracasso, desânimo, conformismo ou estagnação perante as provações.

Bonança é a certeza de um porto seguro, de uma maré tranqüila, e de uma terra firme para aqueles que perseverarem nos embates da vida. É o sentimento do dever cumprido e a consciência tranqüila por todo empenho humano em contornar os percalços da vida. Calmaria é o tempo que apazigua os sentimentos de medo, saudade e abandono. Faz-nos olhar os problemas da vida sob uma nova ótica. Somente passando pelas tribulações, enfrentando as tempestades e encarando a realidade podemos de fato compreender o estado de bonança, paz.
Talvez seja muito parecido com o sentimento do Apóstolo Paulo quando nos fala: “Combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé; agora está reservada para mim a coroa da justiça” (2Tm 4,7). Quando enfrentamos os nossos problemas com dignidade, esgotamos todas as alternativas de soluções e buscamos humildemente ajuda para resolvê-los, gozando de paciência e equilíbrio sem cairmos nas amarras da revolta e do distanciamento de Deus e das pessoas, mesmo que não consigamos resolvê-los imediatamente, a nós é reservada a coroa da bonança: um tempo de paz, equilíbrio e segurança.
Quando vivemos este tempo de bonança, tempo de certeza e convicção de que tudo foi feito para superar as tempestades da vida: mesmo que chova lá fora, dentro de nós brilhará o sol, porque estamos repletos da sensação de alívio. Quem enfrenta seus problemas com maturidade atravessa as tempestades com equilíbrio, e busca fazer das crises um momento de aprendizado e crescimento sem revoltas, receberá indissoluvelmente a coroa da paz. Assim foi com São Paulo, com São João da Cruz e com Teresa de Calcutá e, sem dúvidas, será com todos aqueles que não esmorecerem em seus desafios, completarem a corrida e guardarem a fé. Aqueles que perseverarem, mesmo que chova lá fora, serão agraciados e aquecidos pelo sol do alívio e da paz.

Vilmar Dal-Bó Maccari

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Jamais me lavarás os pés?

Mosáico Lava-pés - Vaticano -
Se existe um pecado maior do que não amar é o pecado de não se deixar ser amado. Se existe um gesto mais omisso do que cruzar os braços, esse é o não aceitar um abraço amigo quando mais precisamos. Se há algo mais grave do que não colocar os próprios talentos a serviço, é impedir que alguém os coloque. Mais mortífero do que a incapacidade de amar é a capacidade de esterilizar o amor alheio.

O evangelho de João nos narra uma cena instigante: Jesus inclinado diante de Pedro tentando lavar-lhe os pés e esse, sem compreender o gesto diaconal de serviço do Mestre, resiste impetuosamente exclamando: “Jamais me lavarás os pés”! (Jo 13,8) Jesus, o divino pedagogo, responde ao “cabeçudo” discípulo: “Se assim não fizer, não terás parte comigo”.

A água derramada nos pés de Pedro simbolizou a água que o fez tornar-se parte de Jesus. Talvez tenha sido aquela água a dose necessária para lavar o peso da consciência e do arrependimento que, mais tarde, o consumiria por ter negado o Mestre três vezes ou, quem sabe, tenha sido aquela água a força maior para Pedro confessar ao próprio Senhor sua profissão de fé: “Senhor, tu sabes tudo, tu sabes que eu te amo” (Jo 21,17)

Mais do que permanecer com os pés retraídos, cobertos e secos ao tentar evitar o lava-pés, Pedro corria o risco de não fazer parte do Senhor, não conhecer seu amor e não amar como o Mestre amou.
Muitos gestos, frutos de nosso temperamento intempestivo, podem levar-nos ao fechamento de coração e a impedir-nos de conhecer o amor, e a fazer experiência de Deus. Por isso, permita-se:

Deixe-se abraçar
Permita-se receber um abraço amigo, afetuoso, apertado, inesperado. Sentirá a ternura com que Jesus abraçava as crianças. Você vai se tornar uma pessoa mais terna, afetuosa e segura.

Deixe-se beijar
Permita receber o beijo do carinho, da fidelidade, da paz. Vivenciará o mesmo sentimento de pertença que Jesus sentia quando era acolhido com um beijo ao entrar numa casa. Você vai se tornar uma pessoa mais acolhedora, comprometida e zelosa.

Deixe-se conhecer
Permita que as pessoas o conheçam e que elas o descubram. Experimentará o sentimento de comunhão e unidade como Jesus sentiu ao dizer: “Vinde e vede onde moro” (cf. Jo 1,38). Vai se tornar uma pessoa mais amiga, comunitária e gentil.

Deixe-se amar
Permita que o amem e conhecerá o amor. Sentirá os nobres sentimentos de Jesus. Vai ser uma pessoa mais equilibrada, alegre e santa.

Retomando à cena do Lava-pés: num primeiro momento, Pedro não queria ter os pés lavados pelo Mestre, mas, quando percebeu que a partir daquele gesto de auto-exclusão corria o risco de não fazer parte de Jesus, optou por imediatamente ser lavado.

Mesmo que tenhamos inúmeros motivos para desacreditarmos e desistirmos da vida, não percamos a oportunidade de nos abrirmos para o amor. Talvez seja ele a água mais pura e cristalina derramada sobre os nossos pés e corações, o melhor antídoto para vencermos a prática esterilizante do amor do outro.



Vilmar Dal-Bó Maccari

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Contar bolinhas na casa da Nona

Foto: crianças-brincando

Pequeno costumava nas férias escolares passar alguns dias na casa de meus Nonos (Avós), no interior. Um lugar lindo, cheio de encantos para uma criança. Havia animais, riachos, cachoeiras, montanhas, pastagens verdes, açudes para pesca e muitas trilhas a serem exploradas. Como toda criança, fértil em imaginação, sempre havia para mim um tesouro por ali, prestes a ser descoberto, sem falar das deliciosas comidas preparadas no fogão a lenha pelas mãos da Nona: polenta, arroz branco, lingüiça, queijo e, indispensavelmente, na janta de toda noite, minestra com radicce: espécie de sopa de feijão com arroz branco, acompanhada de folhas verdes, amargas. Verdadeiramente deliciosa!

Para mim, os dias de férias na casa da Nona equivaliam a uma colônia de férias: Disney World, Beto Carreiro, Parque Aquático, nada se comparava à sensação de estar na “Grande Floresta”. Os dias que lá passava eram suficientes para esquecer o programa da Xuxa, Trapalhões, desenhos animados e leituras de gibis. Bom mesmo era correr atrás dos animais, aventurar-me mata adentro, fazer cabana na mata, caçar vaga-lumes e aprisioná-los em vasilhas.

No final de um dia tão agitado, cheio de “aventuras”, chegava sempre a hora do banho, a janta, “minestra com radicce” e, logo após, a reza do Terço. O Nono pegava um velho rosário dependurado num prego na parede e começava a reza do Terço. Para mim, este era o momento mais cansativo do dia, um verdadeiro sonífero.

Durante o dia meus Nonos poupavam-me de trabalhos, deixavam-me livre pra brincar, mas, na hora do Terço não havia escolha: tinha de participar mesmo caindo de sono. Eram muitas Ave-Marias, entre um mistério e outro a invocação de São Donato, Santo Antônio e Nossa Senhora “Madre di Dio”. Para mim, aquilo era uma verdadeira tortura: contar bolinhas do Rosário, e caindo de sono.

Terminadas as férias, era hora de retornar à casa dos pais com muitas novidades. Na escola não me cansava de contar para meus amigos as inúmeras aventuras vividas na casa de meus Nonos. É verdade que aumentava um pouco, próprio da imaginação criativa de toda criança.

Hoje, um pouco mais maduro, e ainda com alma de criança, vejo quão sadias eram minhas férias na infância. Quando fecho os olhos e relembro cada momento vivido sinto o cheiro da comida, o barulho dos animais e, o mais impressionante, o velho Nono recitando o Rosário acompanhado da Nona que respondia, com toda a devoção, enquanto finalizava a lavação da louça do jantar: Santa Maria. Madre di Dio.

Gosto de pensar que foram aquelas Ave-Marias do passado, incompreendidas nos tempos de criança, a maior força de minhas lembranças hoje. Sem elas, talvez, eu não teria retornado inúmeras vezes à minha infância naquela casa. Não disponibilizava TV a cores, vídeo-game, Nescau, bolachas recheadas e brinquedos eletrônicos. Acredito que foram aquelas Ave-Marias que me deram a simplicidade para viver durante as férias, mesmo que por curto espaço de tempo, como deve ter vivido o menino Jesus: no campo, na simplicidade, alegria, liberdade e oração.

Quantas saudades das férias na casa dos Nonos! Quanto bem me fez aquele “sonífero” Terço que desperta no homem inacabado de hoje o menino simples de outrora.

Vilmar Dal-Bó Maccari

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Joelhos e corações ralados: o mertiolato da esperança

Foto: criança ferida
Parei para pensar: por que os joelhos ralados da infância cicatrizam mais rápido do que o coração ferido de “homem feito”. Lembrei-me dos tempos em que as gotas de mertiolato ardiam com intensidade quando derramadas sobre as feridas mas, mesmo assim, não cessava o desejo de voltar a brincar, correr riscos, desafiar os limites e novamente tornar a ralar os joelhos.

Com o coração é tudo diferente. Quando este é ferido, machucado, magoado, mesmo que seja derramado nele um frasco completo de mertiolato, ainda encontra dificuldades para voltar a ser o que foi. O coração de “homem feito” não é como os joelhos de crianças, o mertiolato aplicado sobre ambos pode até ser o mesmo, conter a mesma fórmula, provocar o mesmo ardor, mas o tempo e o processo de cura e cicatrização são diferentes.

Os joelhos ralados de criança, por mais vezes que sofram um grave acidente, nunca se cansam da esperança de recomeçar, temem a dor e o ardor provocado pelo mertiolato, mas estes não são maiores do que o desejo de voltar a brincar.

O coração, por sua vez, uma vez ferido encontra dificuldades para pulsar no mesmo ritmo, fecha-se ao recomeço e a novas oportunidade que a vida pode lhe oferecer, encoleriza-se pela raiva e pelo ódio, atem-se ao ardor doloroso do mertiolato e não consegue vislumbrar a cura que esse pode lhe oferecer.

Um velho dito popular diz: “O que arde cura”. Somente aquilo que possui a propriedade de arder é capaz de curar: o perdão, a misericórdia e a compaixão são os melhores mertiolato do coração, são verdadeiros antídotos que fazem arder, pois exigem abertura, humildade, reconhecimento e benevolência para conceder e receber a cura através do perdão.

Na passagem dos discípulos de Emaús (Lc 24, 13-35) os discípulos comentavam: “não nos ardia o coração quando Ele nos explicava as Escrituras?”. Jesus, com seus ensinamentos, sua presença amiga e com o partir do pão, a Eucaristia, curava o coração dos discípulos feridos pela frustração, pelo desânimo e pelo fracasso de terem perdido o Mestre no drama da cruz. Jesus derruba sobre eles o mertiolato da esperança e os faz novamente acreditar: “não ardia o nosso coração quando Ele nos explicava as Escrituras?”.

Todos precisamos derramar um pouco de mertiolato sobre nossas feridas: o mertiolato da fé quando tudo parece obscuro, o mertiolato da esperança quando nada mais faz sentido na vida e, quem sabe, o mertiolato da caridade, quando nos sentimos abandonados. Todos nós somos carentes de curas. E. não esqueçamos, nas dores do coração, que melhor aplica mertiolato é o Pai. Ele permite as quedas, mas logo vem sarar as feridas.

Aparentemente, os joelhos ralados são mais fáceis de tratar do que as feridas do coração: basta derramar algumas gotas de mertiolato e uma porção de disposição para recomeçar e tudo parece resolvido, enquanto que o coração, mesmo que seja derramado sobre ele “todo o mertiolato do mundo”, se não houver algumas doses de humildade, simplicidade e amor tudo é em vão. O que arde cura, mas somente o amor cicatriza!
Não tenhamos medo de mertiolato, principalmente dos mertiolatos da espiritualidade, da oração, do sacrifício e da caridade. Como companhia, sempre chega um soprinho gostoso de quem o aplicou e as mesmas e tradicionais palavra: “viu só?, nem doeu”. E não dói mesmo! Mertiolato só dói quando se esvai a esperança daqueles que estão feridos.

Vilmar Dal-Bó Maccari

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Dona Lúcia e seu avental

Maria Madalena

Dona Lúcia, mulher “sem fineza”, pessoa que conheço desde os tempos de infância, é uma daquelas senhoras que vale ser conhecida. Coração de ouro, esposa zelosa, mãe dedicada, avó coruja, mulher de fé. Talvez dona Lúcia seja igual a “tantas e tantas” outras senhoras que se dedicam a fazer o bem às pessoas. Bem, eu não conheço “tantas e tantas” outras senhoras com os mesmos predicados de dona Lúcia, por isso, atenho-me a ela, ou melhor, àquilo que aprendi com ela.

Dona Lúcia é mulher do avental, e quem veste avental não tem medo nem preguiça para o serviço: limpa, cozinha, trabalha, serve. O avental de dona Lúcia é um sinal-testemunho. Ela vive com o avental manchado para preservar e poupar os que estão à sua volta: filhos, parentes, amigos. As manchas no avental garantem que nem um pingo de sujeira caia nas roupas de seus queridos.

Assim deveria ser nossa vida: vestir o avental da gratuidade, do favor e da gentileza. Quem sabe, filosofar menos e servir mais!

Muitas vezes somos tentados pelo jogo da aparência, do conhecimento letrado e da intelectualização desmedida: aposentamos o avental na gaveta e nos cobrimos com as vestes luxuosas da arrogância, soberba, prepotência e vaidade.
As vestes luxuosas são mais atraentes do que o avental da dona Lúcia, mas não carregam marcas de amor: o bordado ponto-cruz da vovó, as manchas da massa do bolo de cenoura, o vermelho do molho-de-tomate do cachorro quente, as manchas de óleo da fritura. As vestes luxuosas não lembram os almoços de domingo, a reunião de família, as louças lavadas, a visita dos netos, o prato preferido dos filhos, a família reunida.

Felizes os que preferem o avental, a simplicidade, pessoas e relacionamentos.
Na última Ceia, o próprio Jesus vestiu o avental da simplicidade para lavar e enxugar os pés dos discípulos. Deixou-nos o gesto concreto do serviço: seu avental é sua estola diaconal.
Nossas famílias perdem a espiritualidade do avental, serviço, simplicidade e união. Quanto mais se aposenta o avental, mais se esquece seu sentido.

Um avental antigo, surrado, servido, eterniza recordações, memórias, lembranças. Uma veste luxuosa, ao longo do tempo sai da moda, fica em desuso e acaba num brechó.
Vaidade, soberba, conhecimento, tudo passa, mas, o gesto bonito de simplicidade de quem veste o avental, não passa.

Os pais não gostam de apresentar aventais para seus filhos: é fora de moda, preferem as parafernálias eletrônicas. Tudo passa!
Quanto a dona Lúcia, sou feliz por vê-la feliz com seu avental surrado. - Quem herdará o seu avental? Todos, lá em casa, estamos ocupados demais com os equipamentos que facilitam a vida. Triste sina: pobre e órfão avental, pobres órfãos sem avental!

Vilmar Dal-Bó Maccari

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Amor de mãe - amor que ressuscita

Viúvas - Graça Morais
O Senhor, ao vê-la, ficou comovido e disse-lhe:
“Não chores!”
(Lc 7, 13).

O evangelho de Lucas narra a passagem da ressurreição do filho da viúva de Naim. Mulher viúva, solitária, mãe de filho único, defrontada pela dor de enterrar o filho amado. O evangelho não narra, mas é bem provável que esta mulher, de cultura semítica, vivesse o drama da opressão social e dos conflitos vigentes em seu tempo, tônica de todo o discurso dos antigos Profetas: o órfão, a viúva, a mulher, o estrangeiro e o pobre. Com a morte do filho único era intensificada sua situação de abandono. O filho era aquele que a acolhia, dando-lhe segurança e estabilidade social, afetiva, moral e, até mesmo, a garantia do sustento. Sem o filho, a viúva estava verdadeiramente abandonada, tornara-se vítima de um sistema preconceituoso e excludente.

Ao deparar-se com o funeral deste jovem e presenciar a dor da pobre mãe, Nosso Senhor comoveu-se de tal forma que fez parar o cortejo e, com autoridade, enfrentou a morte com a vida, e ordenou que o morto voltasse a viver. Imediatamente o jovem voltou à vida e o próprio Jesus o devolveu a sua à sua mãe.

O evangelista não narra o final desta história, mas, minha imaginação não se cansa de passear pelo quintal daquela família e imaginar as reações de alegrias, os sentimentos, as lágrimas e a comoção após tal acontecimento que os acompanharam por toda a vida.

Fico pensando o que passa na mente e no coração de uma mãe que, após experimentar a morte do filho, chorar sobre a urna recebe a graça de tê-lo novamente cheio de vida em seus braços. Imagino a reação de felicidade, a intensidade dos abraços, as lágrimas nos olhos, os beijos até excessivos, a necessidade de abraçá-lo fortemente e não permitir separar-se nem mesmo um segundo se seus braços. O sentimento de proteção e guarda, nato de toda mãe, e o desejo de gerá-lo novamente.

Acredito que a maior dor que uma mãe pode experimentar é a dor da perda de um filho. Talvez não haja na gramática de qualquer língua e cultura uma palavra que possa expressar tamanho sofrimento.

Quando imagino o filho voltando para os braços da mãe imagino o rosto desta mulher que, na vida, experimentou a morte e, na morte ainda em vida, encontrou a ressurreição. O amor tem esta sutileza: ressuscitar os vivos!

A Bíblia narra diversas passagens em que Jesus atende aos pedidos de pais e concede a cura a seus filhos. Jesus se compadece com a dor, o sofrimento e a angústia de um pai ou mãe que sofrem. Ele atende a intercessão, o clamor, o grito, as orações que brotam do coração aflito de mãe. A oração de mãe por seu filho é sempre solícita: comove o coração de Jesus e provoca a graça. As lágrimas de uma mãe por seu filho são recolhidas por Jesus.
A ressurreição do filho é sempre a ressurreição da mãe. O filho é uma extensão de amor, de vida, e de zelo.

Jesus deu nova vida para o filho da pobre viúva para que ela mesma ressuscitasse. Espero na gratidão desse jovem, pois foi através do amor e da fé daquela mulher que ele reencontrou a vida. Quem conhece o valor do amor de sua mãe conta com suas orações e economiza suas lágrimas, encontra no cotidiano da vida sinais contínuos de ressurreição.

Vilmar Dal-Bó Maccari

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Migalhas de amor

Imagem Pai e filho - Steivens - Fathe

A força da vida, a realidade que nos cerca, os acontecimentos da existência são de impressionar. Acredito que nesta dinâmica de viver perdemos inúmeras oportunidades de aprender com as situações concretas do dia a dia. É sintomática nossa capacidade de não perceber tantos momentos significativos e pedagógicos na escola da vida. Vivemos à espera de grandes acontecimentos, novidades estrondosas, oportunidades ímpares, e não nos damos conta das migalhas vitais que diariamente caem no chão da nossa vida, e são pedagógicas. Relato um fato que me deixou muito desconcertado.

Em um destes domingos comuns da vida, participei da celebração da Santa Missa numa catedral. No banco da frente estava uma família harmoniosa: um senhor na faixa dos seus 37, 38 anos, sua esposa, uma senhora de idade um pouco mais avançada que deveria ser sua mãe, e um menino por volta dos seus 4 a 5 anos. Uma cena aparentemente normal, não fossem os gestos profundamente afetuosos trocados entre pai e filho durante toda a Celebração. Somos acostumados a ver as crianças perambulando em torno de suas mães, implorando atenção e cuidados a que toda mãe, por sua vez, corresponde com muita presteza.
Essa família chamou-me atenção porque a situação era inversa ao padrão que estamos acostumados ou que a sociedade nos convencionou. O pequeno acariciava o pai, abraçava-o, tocava seu rosto com tamanha ternura, se envolvia em seus braços de forma tão terna e afetuosa que era impossível não perceber a intensidade daquela relação. Despertava a atenção dos que estavam em volta. Por sua vez, o pai correspondia ao carinho do menino na mesma proporção, lhe sorria, beijava-o, acariciava sua cabeça e dava-lhe toda a atenção. Era uma cena de profunda intimidade paternal.
Durante a Celebração o menino permaneceu ao lado do pai, sem choro, “ganjas” e “manhas”, ora em seus braços, ora sobre o banco apoiado em seus ombros, ora ao lado em sentido de prontidão. Em alguns momentos o menino olhava para a mãe e dava-lhe um leve sorriso, e ela lhe correspondia com uma piscadela de olhos. E assim ele permaneceu durante todo o tempo, sem nenhum constrangimento, trocando afetos em público, como se gritasse para todos os presentes naquela catedral: esse é o meu pai amado, nele eu deposito toda minha confiança, meu amor, segurança e carinho.

Fiquei encantado com aquela cena aparentemente fora dos padrões. O pai assumindo sua paternidade na forma mais intensa possível e o filho, sem restrições, entregando-se ao amor paterno.
Por toda a Missa fiquei com aquela imagem na cabeça. Desejei por alguns instantes tomar o lugar daquela criança e experimentar em mim o amor e a atenção que aquele pai dispensava. Queria sentir a segurança de seus braços, o carinho e a ternura que dele emergia. Mas, imediatamente, desejei também ser um pouco a figura do pai, portador de segurança, estabilidade e confiança para o filho que apenas buscava o amor. Meu coração se inquietava: uma cena tão banal, ao mesmo tempo tão cheia de sentido. Fui à igreja rezar a Deus e Deus rezou comigo através daquela família!

Confesso que, ao final, não recordava uma palavra que o senhor Bispo proferiu em sua homilia. O gesto amoroso entre pai e filho, sim, insistia em não sair de meus pensamentos.
Se o amor entre pai e filho pode mexer de tal forma com nossa humanidade, despertar os mais profundos sentimentos de afeto, provocar tamanha emoção e fazer brotar o mais íntimo desejo de vivenciar aquela experiência de amor filial, fico a imaginar o tamanho do amor de Deus para conosco. Quão grande deve ser a alegria de estar em sua presença, receber seu abraço paterno, encostar a cabeça em seus ombros e por ali permanecer indefinidamente. Se o amor humano nos seduz no tempo e no espaço, o amor divino nos amadurece para a eternidade.

Percebi que aquela relação humano-afetiva entre pai e filho, repleta de carinho, confiança, segurança, paciência, cumplicidade e amor é uma pequena demonstração do que vem a ser o céu. Quem sabe, uma gota do paraíso. O céu deve ser este amor puro e vivo de forma constante, elevado ao infinito.
Enquanto meus olhos estavam fitos no altar durante a Celebração, o céu acontecia um banco à minha frente. No final, descobri que aquele gesto de amor era apenas uma migalha do que Deus pode nos oferecer.
Agradeci verdadeiramente as migalhas que daquela família caíram no chão da minha vida e saí de lá confiante: o melhor está por vir.

Vilmar Maccari Dal-Bó

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Osculum de amor – o beijo

O beijo de primavera ( Gustav Klimt)

O beijo aparece na história da humanidade por volta do ano de 2.500 AC, na Índia. Acreditavam que ao beijar as paredes e as colunas dos templos, lugares de encontro com o sagrado, estariam estabelecendo um contato de intima relação com as entidades divinas. O beijo era muito comum entre os povos gregos e os romanos: os guerreiros, ao retornarem dos combates, eram recebidos com calorosos beijos. Os gregos adotaram-no como prova de reconhecimento. Mas foi com os romanos que o beijo ganhou a história ocidental. Os imperadores permitiam que os nobres beijassem seus lábios em sinal de soberania e os menos nobres suas mãos, aos súditos ofertavam-lhes os pés, sinal de culto, referência e servidão. Havia três categorias de beijo: o basium, entre conhecidos, o osculum entre os amigos, e o suavium, entre os amantes.

Na Sagrada Escritura, envolto pela tradição semítica, o beijo ou o ato de beijar aparecem vinte e três vezes. Reconhece-se: o osculum da paz e da comunhão, o basium da saudação e da traição, e o suavium da conversão.

Em sua primeira carta, Pedro exorta: “Saudai-vos uns aos outros com o ósculo de amor. A paz esteja com todos vós que estais em Cristo” (1Pd 5,14). Paulo utiliza-se da mesma expressão em 2 Coríntios 13,12: “ Saudai-vos uns aos outros com o ósculo santo”. O osculum representa a presença amiga, a relação afetuosa de unidade, comunhão e bem querer entre aqueles que estão irmanados nos mais nobres sentimentos, desdobrados em gestos de partilha, fraternidade e união. O osculum, ainda, é símbolo de retorno, vida nova e perdão, como na parabóla do filho pródigo, em que o pai beija o filho após o retorno de sua viagem de distanciamento do amor (Lc 15, 11-32)). O osculum é sempre a externalização do mais verdadeiro e completo afeto que brota do coração em direção ao outro.

O basium é o beijo entre conhecidos, não necessariamente exprime o sentimento de afeto, pertença e fidelidade. É o beijo da acolhida. Em Lucas 7, 28, é narrado: “... quando cheguei a sua casa você não me deu o beijo, mas esta mulher não parou de me beijar os pés”. O basium na cultura semítica expressava o gesto de cumprimento sem comprometimento. O beijo de Judas em Jesus foi um beijo de sinal, um beijo de indicação, apontava para aquele que deveria ser preso.

Por sua vez, o suavium, caracterizava-se como o beijo do ardor, carregado de desejos como o de posse e paixão. Beijo típico dos convertidos, como no relato da pecadora arrependida que cobria os pés de Jesus com beijos (Lc. 7,28).

O costume do beijo fazia parte da cultura de Jesus e de seus seguidores. É provável que este fosse um gesto comum entre seus familiares, amigos e discípulos e, mais tarde, o gesto passou a ser incentivado por Paulo nas comunidades primitivas. O beijo encontrou diversos sentidos em diferentes culturas: bênção, enamoramento, agradecimento, compromisso, reconhecimento. No latim seu significado etimológico quer dizer “toque de lábios”, e na cultura ocidental é considerado um gesto de afeição entre amigos e apaixonados.

O beijo, gesto de amizade, reconciliação, amor

O beijo, porém, carregado de tão belos sentidos e afetos e também, de profundo conteúdo teológico, tornou-se vítima das amarras da permissividade e da banalidade das relações erotizantes que exploram os sentimentos afetivos e o corpo. Quando o reservado é desnudado, a complexidade do mistério é esvaziada. O sentido do beijo perde-se à medida que se perde a sua eleição e privacidade. O beijo que outrora se destinava aos vencedores, aos fraternos, abençoados, eleitos e amados, tornou-se, midiaticamente reduzido ao símbolo do prazer.

Homens não choram, não têm medo e não beijam! Filhos não beijam pais, pais não beijam filhos, amigos não se beijam. O beijo tornou-se quase que exclusivamente a “ante-sala” do prazer carnal. Não que não o deva, mas seu sentido e significado é muito mais extenso.

Beijar faz bem! Bem para quem beija e bem para quem recebe o beijo. Beijar faz bem para quem está com saudade, com vontade de pedir desculpas, para quem quer agradecer, desejar a paz e a felicidade do outro. Beijar é selar um sentimento de gratidão, de pertença, de continuidade. É um modo de pedir atenção, carinho e confirmar fidelidade. Beijar é tornar a pessoa especial, seleta, importante, singular. Um beijo suaviza, marca, sela, cala. O beijo humaniza, estremece, confirma.

Recuperar o sentido do beijo é resgatar as relações afetuosas, puras e singelas. É fazer sentir a “paz conosco”, a suavidade da inocência, o perdão das faltas e o compromisso da fidelidade. Beijar é gritar na voz do silêncio uma única palavra que ecoa na carne: amor.

Vilmar Maccari Dal-Bó

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sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Em nome da saudade



“Meu filho, por que agiste assim conosco?” ( Lc 2, 48).

“Filho, por que agiste assim conosco?”. Estas são palavras de Nossa Senhora, escritas pelo evangelista Lucas (Lc. 2,48), ao narrar o encontro de José e Maria com o menino Jesus no Templo de Jerusalém depois de o terem perdido por aproximadamente três dias. Somente um pai e uma mãe sabem o que é a dor de perder um filho, mesmo por um curto espaço de tempo: 1 minuto, 1 hora, três dias ou por toda a vida. Dor profunda que angustia o coração e inquieta a alma.
A perda desconcerta o homem. O sentimento de ausência na linha da distância abre as portas da saudade para o coração, e esta, por sua vez, aprofunda a experiência de recordar o passado no presente da vida. Para saudade não existe tempo nem espaço: não nos é permitido controlar sua intensidade e seu modo de bater à porta. Às vezes chega sutilmente, de forma vagarosa, quando menos a esperávamos, por meio do reencontro com um velho amigo dos tempos de infância. Outras, através de retratos fotográficos que recordam as lembranças de outrora; quem sabe, por uma filmagem antiga ou, ainda, pelas marcas de expressões do tempo, como os cabelos brancos, a voz fraca, as mãos trêmulas ou o cansaço do corpo.

A saudade nos recorda a vida: velhos tempos de infância, comida gostosa, carinho recebido, sonhos planejados, palavras não ditas, momentos em que fomos heróis, bandidos, moçinhos, sentimentos não correspondidos, os desamores da vida. A saudade tem a capacidade de nos propor uma reflexão existencial ao nos indagar: Filho, por que agiste assim contigo? Ela recorda o protagonismo de nossa história. Faz-nos dar gargalhadas com “trapalhadas” vividas e percebermos como potencializávamos problemas que na ótica de hoje consideraríamos periféricos. A saudade nos remete à verdade. Verdade muitas vezes doída. Recorda-nos as mágoas não resolvidas, as desculpas não concedidas, ressentimentos, sonhos não realizados, amores não conquistados.
A saudade é, verdadeiramente, um movimento pendular de alegria e frustração, acertos e erros que revelam ao homem o chão de sua história de vida. Sempre quando sentimos saudades, sentimos em nós a marca da vida desnudada.

Graças ao presente em que vivemos, podemos acolher o passado e planejar o futuro. A saudade não tem fim, e ela não acabará na medida em que nós continuarmos vivendo. Por isso, prosseguimos vivendo, dando sentido a saudades que afloram em nossa mente e coração: dentro do possível trabalhando-as no presente da vida, para que no futuro sejam sempre recordações valiosas. Recordações com gosto de felicidade!

Em nome da saudade vale recordar, escrever, cantar, aprender, chorar, perdoar, sorrir, e continuar. Em nome da saudade não é permitido desistir do agora da vida. Para Deus não existe ontem, nem amanhã. Deus é o eterno e amoroso, agora! Como sabiamente nos ensina Santa Teresa: " Tudo passa, só Deus basta."

Vilmar Dal-Bó Maccari

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Rolem as pedras




“... Porque nenhum de vós vive para si mesmo
como nenhum de vós morre para si mesmo...” (Rm 14, 7-9).


Os grandes místicos e estudiosos da vida espiritual moderna comumente afirmam em seus escritos e tratados de espiritualidade que homem algum é uma ilha. Todo homem é um ser em relação. Ninguém por si se basta. Não vivemos para nós mesmos, assim como não morremos por nós mesmos. Somos seres relacionais. Relacionamo-nos com o outro, com a sociedade, com o cosmos e com o sagrado.

Não pode o homem existir sem o seio de uma família. Não pode o homem sobreviver sem os recursos naturais. Não pode o homem passar pela vida sem interpelar-se pelo sagrado.
A relação do homem com o mundo é fruto da liberdade criacional: Deus criou-nos no amor e na liberdade e, por isso, somos livres. A nossa liberdade é a maior prova do amor de Deus e, ao mesmo tempo, o seu maior risco. Na liberdade podemos optar pela vida plena em Deus ou pelo distanciamento consciente do mesmo. Nossas escolhas são frutos de nossa liberdade.
Deus amou-nos de tal modo que não nos quis marionetes, personagens manipulados, condicionados, parasitas pré-determinados. Ele nos criou livres - mesmo correndo o risco de perder-nos - para que pudéssemos, segundo a nossa consciência, buscar a verdadeira felicidade.
Nessa busca somos lançados no mundo. Deparamo-nos com diversas pedras no caminho da vida, pedras que precisam ser removidas, roladas e até mesmo implodidas. É a real necessidade de assumirmos e superarmos os enfrentamentos da vida.

Para compreender este movimento de busca, remoção e implosão são necessárias algumas perguntas: O que é a felicidade?O que vale para ser feliz? Quanto custa a felicidade? Onde mora a felicidade?

É verdade que são perguntas de grande subjetividade e lhes cabem respostas de igual subjetividade. Apesar disso, podemos definir alguns aspectos objetivos.
Antropólogos afirmam que o prazer pelo puro prazer não é sinônimo de felicidade. Augusto Cury, escritor neurolingüístico, afirma: “Há habitantes dentro de grandes mansões que são verdadeiros mendigos, e há dentro de velhos barracos habitantes que são verdadeiros milionários”.

A busca pela felicidade autônoma, desligada de Deus, torna as pessoas prisioneiras de meias verdades, sem os critérios do justo, do belo e do bom.
O mundo está amando pouco: as pessoas estão amando pouco! A felicidade está cada vez mais longe daqueles que a buscam. As pessoas passam a vida em busca da felicidade e quando a encontram percebem que ainda lhes falta algo. Que algo seria esse? Não seria a verdadeira experiência do amor? Ou, quem sabe, a coragem para implodir as pedras do medo, do desânimo, da incapacidade, do ressentimento e da amargura?

Quando não cultivamos a espiritualidade, quando não rolamos as pedras que nos impedem de lapidar nossa humanidade, por mais que tenhamos tudo o que podemos ter sempre sentiremos um vazio existencial a ser preenchido, a sensação do “falta-me algo”. Este espaço vazio é a falta da experiência do sagrado! É quando a matéria, o esforço humano, a ciência e o conhecimento não conseguem completar o homem de forma integral.

A espiritualidade é este “algo a mais” que transforma um profissional brilhante em brilhante profissional realizado. É a força que consegue transformar uma modesta casa de família em paradisíaco lar familiar. É a fonte capaz de suscitar relacionamentos autênticos em relacionamentos formais. A espiritualidade é a sutileza da vida, melodia completa, verso perfeito, matéria bruta modelada.

Quando se une a espiritualidade à vida, percebemos que passamos pela vida na alegria de viver. Rolamos pedras que pareciam grandes pedreiras.

Mendigos em mansões, ou milionários em barracos, a liberdade sempre nos acompanhará!
Nossa condição, pouco importa, sejamos sempre protagonistas de nossa liberdade. Não tenhamos medo de rolar as pedras da vida. O fruto justificará o esforço!










sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Sempre haverá um caminho


Somos mais que vencedores,
graças àquele que nos amou (Rm 8,37).


Segundo Sève, o verdadeiro cristão dá um belo testemunho de vida quando não perde o ânimo em um mundo no qual, cada vez mais, as pessoas desistem diante do menor obstáculo. O homem de fé está longe de contínuos avanços triunfais, mas não capitula. Crê, acredita! Aí está a chave. Ele crê que, em sua vida, é Deus quem lhe pede, dando-lhe o necessário para realizá-lo. É simples, mas essa simplicidade faz cristãos robustos. Diante dos obstáculos, conserva a convicção de que, com Deus, sempre há um caminho. Nenhum pensamento é tão libertador quanto o de confiar plenamente em Deus. O abandono nos braços de Deus nos desperta para uma reviravolta interior, que nos afasta do aniquilamento ou da preguiça, e nos faz reencontrar a vontade de agir.

O cristão robusto não tem medo de agir. Age, simplesmente, onde estiver ou no que está fazendo: na família, no trabalho, nos estudos. Aí está a vida, escrita em atos e gestos concretos. Age como crê, crê agindo.

A vida, porém, nem sempre é tão poética e muitas vezes nos sentimos presos por sua própria dinâmica. É como se fôssemos música sem melodia, poema sem verso, existência sem vida, caminho sem estrada. Surge, então, o grande desafio para quem crê: avançar na fé, na esperança e no amor. Blaise Pascal, matemático e teólogo, afirma: “Para quem não quer compreender, não existe um só argumento! Todavia, para os que crêem, existem milhares de argumentos!”.

Na fé, acreditamos que nada nos bloqueia, podemos sempre progredir, contamos incontestavelmente com a amizade de Deus. Substituímos, dentro de nós e ao nosso redor, o desânimo paralisante pela esperança vivificante, sentindo assim a realização da obra divina no presente de nossa vida. Ela nos capacita para a paciência, a benevolência e a retidão, características fiéis do amor.

Tudo é possível a quem crê! Enquanto houver disposição sincera no coração do homem, haverá o amor corajoso, disposto a agir, que se mantém vivo, apesar dos obstáculos da vida. Deus é amor! Sua palavra é eficaz e jamais nos abandona. Sempre aponta-nos um caminho quando apontamos a nossa vontade de viver.

sábado, 24 de julho de 2010

O vazio filosófico – crise de valores



O mundo nos oferece múltiplas oportunidades na vivência, estamos em uma época de livre escolha. Somos impregnados de informações, caminhos e possibilidades. Nunca se soube tanto de tantas coisas e, ao mesmo tempo, nunca se soube tão pouco de uma única coisa. Temos muitas informações e pouquíssimos conhecimentos sistematizados. Somos uma geração limítrofe no que diz respeito à especialidade e doutores no que se refere à generalidade. Conhecemos muito e sabemos pouco. Falta-nos sabedoria! Será?

As tomadas de decisões, os posicionamentos, as reflexões críticas são cada vez mais generalizantes e pouco específicas. Somos mestres na superficialidade. Pessoas palpiteiam, defendem posicionamentos, constróem argumentos inconsistentes e falidos com base nas superficialidades das informações momentâneas. Caímos assim no subjetivismo minimalista.

A Ética e a Moral são as maiores vítimas desta “generalização” que abate a sociedade. Os valores morais e éticos que iluminam o agir humano, frutos da liberdade e da responsabilidade, nunca foram tão assaltados. A filosofia, ciência mãe de todo o conhecimento, foi atropelada nestes “generalismos” comodistas que ousam saber de tudo em uma curta fração de tempo. Os conceitos filosóficos dos maiores pensadores que permeiam todas as ciências do conhecimento humano são ignorados numa forma volátil de transmitir uma informação em um curto espaço de tempo. Defendem-se situações conflitivas como o aborto, a eutanásia, as drogas, as guerras, experiências genéticas sem a preocupação com o pleno domínio de conceitos considerados fundamentais para as tomada de posições: dignidade, liberdade, pessoa, consciência e vida. As tomadas de decisões no campo ético e moral, inerentes ao agir não pertencem a um determinado grupo, tribo ou classe, seja médica, jurídica, psicológica ou sociológica. Os conceitos que envolvem a vida ultrapassam os códigos e as normas do poder autoritário. Uma classe não pode interferir naquilo que é inerente à construção da totalidade da pessoa (ontologia). O saber fragmentado é um crime para sociedade. Abandonando a filosofia, muitos pensam estar aptos para desvinculá-la daquilo que é próprio de sua função: conhecer e revelar a verdade essencial do ser humano.

O laxismo moral e a falta de posicionamentos lúcidos são os maiores inimigos da humanidade. Nunca tivemos uma sociedade tão livre e tão doente. Contamos com pessoas tão bem preparadas, formadas, intelectualizadas, porém, cada vez mais frágeis e fragmentadas. Pessoas que estão à procura e não estão encontrando; estão apaixonadas, mas não estão amando; estão passando pela vida, mas não estão vivendo. Falta consistência nos relacionamentos, autenticidade. Falta filosofia, quem sabe, a filosofia do amor.

Retirem a filosofia da sociedade, dos relacionamentos e das condutas profissionais e estaremos fadados a um desmoronamento social. A Ética e a Moral estão em crise, pois os princípios balizadores de conduta nunca foram tão questionados, desafiados e negados.
O preço da liberdade sem a devida responsabilidade está enfraquecendo as pessoas. O vazio filosófico em um mundo tão informado é a expressão de grandes conhecedores repletos de um vazio que se presume sabedoria.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Benditas sejam nossas turbulências


Todo ser humano passa por turbulências em sua vida. Por mais apaixonante que seja viver, é impossível passar pela vida sem sentir as fagulhas do sofrimento. É no caminhar pela vida que sentimos o sofrimento bater à porta. Todavia, experimentar as turbulências inesperadas da vida e buscar alternativas para suportá-las é o grande desafio da arte de viver.

Diante delas, somos provados em nossa capacidade de contornar obstáculos, abrir janelas, alargar conceitos e não perdermos o sentido maior de nossa existência.

Quando o homem mergulha no mais íntimo de sua condição humana, defronta-se com o emblemático e silencioso embate entre as misérias humanas, emoções e realizações. O homem aspira viver dias felizes, mas geralmente não sabe lidar com seus sentimentos, de modo que a felicidade é intensamente sonhada, porém, raramente alcançada.

A felicidade exige esforço, fôlego para vencer a inércia paralisante do desânimo, do conformismo, da indecisão e do medo de mudar. Abrir novas janelas, percorrer novos caminhos, alargar horizontes são desafios constantes para quem decide persistir no caminho da felicidade.

Turbulência não é sinal de infelicidade, pelo contrario, é a oportunidade desafiadora para não desistirmos de ser felizes. Enquanto encontramos forças para lutar, motivos para recomeçar e razões para acreditar, atualizamos o sentido fundamental de não desistirmos da vida, e então encontramos o segredo da arte de viver.

Jesus nos ensinou que não passaríamos pela vida sem combates, mas garantiu o cêntuplo para os que perseverassem.

Não tenhamos medo de iluminar os porões de nossa vida, abrir as janelas de nossos sótãos, passear pelo íntimo de nossa alma, assumir nossas fragilidades, reconhecer nossas potencialidades. O cêntuplo prometido por Jesus não foi para aqueles que gozam de certezas, mas para aqueles que caminham da soberba à simplicidade, do julgamento ao respeito, da discriminação à solidariedade, da insensatez à sabedoria e do ódio ao amor.

Toda provação é sinal de vida. Deus nos quer na vida, vencendo as turbulências da vida e não por elas derrotados.

Bendito seja DEUS que nos acolhe em nossas turbulências e nos conduz a um porto seguro.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

A ternura na condição da existência




Em âmbito teológico não é comum a reflexão sobre a existência cristã e o mandamento novo numa ótica de ternura, afirma Carlos Rocchetta, renomado professor de teologia da Pontifica Universidade Gregoriana de Roma e da Faculdade Teológica de Florença, Itália. Todavia, a reflexão da ternura de Deus é de fundamental importância para revelarmos ao mundo a bondade, a alegria e a graça de Deus que afugentam qualquer tipo de medo e punição a ELE atribuídos. A ternura no seio do cristianismo supõe, de fato, o anúncio do amor, da alegria e da graça, cumprimento pleno da vida de Jesus Cristo relatada no Evangelho.

A ternura, experiência de liberdade de amar e anúncio de acolhimento, é o enriquecimento mais valioso e positivo na construção de um diálogo respeitoso e humano num mundo marcado mais pelas diferenças.

Foi um coração cheio de ternura, muito mais do que normas e leis, que levou Jesus a transpor as barreiras sociais, culturais, religiosas e políticas impostas em seu tempo.
A mediocridade, o preconceito, a discriminação e a incompreensão são sinais visíveis da falta de ternura no coração humano.

Homens e mulheres são chamados à escola da ternura. A olharem o mundo do mesmo modo que Jesus olhou. Presença entre os mais fracos, doentes e abandonados: somente um coração cheio de ternura é capaz de suportar as fragilidades dos que estão em nossa volta.

Freqüentar a escola da ternura é enfrentar diariamente os embates da vida com as armas do perdão, da alegria e do amor. É desmontar a injustiça, a ganância e a mentira com a prática da justiça, da partilha e da verdade. Somente um coração terno é capaz de fazer escola em Jesus, alargar horizontes, experimentar o amor, aceitar os outros como pessoas, fazendo-se ternos consigo mesmos, irradiando no mundo a força do amor humilde: amor que ama além das fragilidades.