sábado, 20 de novembro de 2010

Ganhar o mundo, perder a vida

Foto: vida em cor e fios

O que adianta ao homem ganhar o mundo e perder a sua alma? (Mateus 26,16).

Do que adianta ao homem toda a glória e poder do mundo, fama, títulos, honrarias e fortunas se não tiver com quem compartilhar suas conquistas? Do que vale o mais belo dos palácios, de arquitetura e decoração refinados, se não houver quem o visite? E o carro mais veloz do mundo, da mais alta tecnologia, se não tivermos a quem dar carona? E o tratamento mais especializado, os melhores profissionais, o mais completo plano de saúde, se na hora da dor não temos alguém que nos dê a mão? Do que adianta medir a vida, o futuro e as relações de convivência pela ótica do dinheiro, da fama e do poder, se no fim da vida dependeremos somente da graça de Deus para nossa salvação, e da boa vontade dos homens para fecharem nossa sepultura?

Todos corremos o risco de passar pela vida com o objetivo apenas de ganhar o mundo: conquistar o melhor emprego, ser admirado, ter poder de influência, alcançar objetivos: família, casa, amigos. Nesta busca incessante do “acontecer” percebemos o risco de algumas vezes ganhar o mundo e muitas outras vezes perdermos a vida no mundo.

Quando chegamos ao ponto de pensar que nossas conquistas terrenas, patrimônios, cargos e salários são tidos como penhor de nossa salvação e garantia de felicidade futura, chegamos à maior miséria humana: a anulação da vida espiritual, da vida humana.

Ninguém ama alguém pelo poder. Ninguém ama ninguém pelo dinheiro. Ambos despertam no homem admiração, encantamento, respeito, ciúme, inveja, cobiça, relações de interesses, até mesmo servidão, mas o poder e o dinheiro não são capazes de despertar o amor.

O amor tem sua origem na gratuidade. Amor é gratidão, liberdade, desapego, austeridade. Sentimento sem medida. Quem ama está livre da correção monetária, do índice inflacionário, do dissídio anual, do metro quadrado, do grau outorgado. Quem ama, ama sem medida. Não pergunta quando e quanto. O amor não tem preço, tempo e espaço. Somente quem ama é capaz de esvaziar-se de si para encher o próximo.

É o amor responsável por situações desconcertantes. Somente ele nos leva a vivermos juntos e felizes em um apartamento apertado de um ou dois dormitórios. É o amor que nos faz ficar anos com aquele mesmo carro, desfilar com ele para cima e para baixo, dando carona para todos sem constrangimentos. É o amor que nos faz acompanhar a pessoa querida na fila do SUS, visitá-la em sua doença, preparar-lhe uma canja gostosa. Somente o amor suporta limites. O dinheiro, o poder e a fama enchem os olhos, despertam cobiça, causam interesse, mas é o amor que transforma as relações.

Há quatro anos tive a oportunidade de cuidar de um sacerdote de 82 anos de idade. Com ele estive até sua morte. Dei-lhe refeições, banho, medicamentos, levava-o para passear, partilhávamos a vida, rezávamos juntos. Muito conversávamos sobre a sociedade, a fé e a vocação. Certo dia, perguntei por que ele insistia em permanecer conosco, pois tinha condição financeira de pagar enfermeiros e morar em uma casa com maior conforto e adaptação para sua enfermidade. Ele respondeu-me: “... porque lá eles não vão me tratar com amor...”.
Naquele momento entendi que eu estava mais do que cuidando de um padre idoso: eu o estava amando. Em vez de procurar o conforto, a técnica e o tratamento especializado ele preferiu ficar próximo daqueles que mais o amavam, e fazíamos isso na gratuidade. O dinheiro do padre nada valia: o que ele queria era ficar conosco, ficar no amor, e ficou até a madrugada de 28 de outubro de 2007.

Aprendi com esta experiência que o amor é o que conta na vida. E é com o amor que nós devemos contar. Foi o amor que me manteve firme ao lado daquele sacerdote até o fim de sua vida, e é somente o amor que trará para perto de mim aqueles que amo quando chegar o meu fim. Ninguém visita, dá carona, ou prepara uma canja gostosa a quem não ama, a não ser por obrigação. É o amor o maior bônus da vida.

Vilmar Dal-Bó Maccari

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Emaús celeste

Foto: Emaús enfim, sou eu

Nos dias quatro a cinco de novembro de 2010 aconteceu em Florianópolis o 67º. curso do Emaús Masculino da Arquidiocese de Florianópolis. Um Emaús histórico! O primeiro Emaús sem a presença do Monsenhor Francisco de Salles Bianchini, orientador emérito do Movimento de Emaús. Foi o primeiro Emaús sem o padre Bianchini ponderando, sugerindo e orientando a dinâmica do curso mas, desta vez, contávamos com a presença espiritual de Monsenhor Bianchini no Emaús celeste, intercedendo por cada jovem cursista, pela equipe de trabalho e por todos que passaram pela comunidade de Emaús.
O Emaús sem monsenhor Bianchini aconteceu de forma natural, marcado pela saudade, pelo sentimento de ausência e pelas recordações de carinho, doação e zelo dedicadas ao longo se sua vida pelo Emaús.

Com este curso é inaugurada a nova geração de jovens do Emaús, jovens que não conheceram o Padre Bianchini, que não tiveram a oportunidade de ouvir sua voz forte, contemplarem seus olhos azuis brilhantes e cheios de lágrimas quando, comovido, falava-nos de Jesus. Surge a geração Emaús do “ouvi falar”. Ouvem falar de um padre que doou sua vida e seu sacerdócio pela causa da juventude, que formou tantos jovens na escola do Evangelho e que soube curar feridas e apontar caminhos em uma época muito marcada pelo relativismo.

Padre Bianchini continuará zelando, cuidando e orientando o Movimento de Emaús, e agora de uma forma muito mais plena. Ao lado do Monsenhor Calazans, fundador Nacional do Movimento de Emaús e do Padre Carlos Rogério Groh, esperamos que Monsenhor Bianchini viva o Emaús celeste, um Emaús infinitamente maior do que aqueles três dias inesquecíveis que marcaram a vida de tantos jovens na terra.

É um Emaús de grandeza incomparável. Lá não há palestras sobre relacionamentos, fé e esperança; lá se vive o amor em Deus. Uma pequena fração do que o Padre Bianchini nos ensinava aqui na terra e que já era suficiente para revermos a nossa vida e experimentarmos o amor de Deus.

Vilmar Dal-Bó Maccari

sábado, 13 de novembro de 2010

Amizade: chegarmos juntos

Foto: Quando formos grandes

Já não vos chamo servos, mas amigos (cf. Jo 15,15).

A amizade é uma forma de amor. Em primeiro lugar requer liberdade e conduta ética de comportamento. Nenhuma forma de amor respeita tanto a liberdade do outro como a amizade que chega a ponto de extrema delicadeza sem exigir explicações. A amizade difere das demais formas de paixões e amores porque escolhe seus objetivos com critérios morais e se comporta moralmente em relação a eles. Amar, escrevia Santo Tomás de Aquino, é querer o bem do outro. A amizade acontece quando queremos a felicidade de alguém e este corresponde a nosso benquerer.

Do amigo esperamos que compartilhe a imagem que temos de nós mesmos ou, pelo menos, que não se afaste dela. Dois amigos devem ter imagens de reciprocidade e semelhança. Não idênticas, naturalmente, pois então não haveria nada para descobrir, mas sem excessivas dissonâncias. De um amigo, portanto, é de se esperar que não nos entenda mal. Se isso acontece, é um alerta ao relacionamento. Um amigo pode discordar de nossas convicções de fé, visão política, modo de conceber o mundo, mas ele é quem vai entender-nos com maior facilidade em relação aos outros, pelo simples fato de ser nosso amigo. É ele que mais conhece nossa história de vida, nosso meio cultural, nossa formação, nossas limitações e nossos traumas. É o amigo que nos conhece a partir do que somos, diferentes dos outros que nos julgam a partir do que aparentamos. A confiança, numa relação de amizade, é muito maior do que as diferenças. O amigo não é um guru que detém a verdade: é um chegar juntos à mesma conclusão a partir de pontos de vista diferentes.
Nos relacionamentos existe sempre um julgamento, este é inerente a toda relação. Culpado ou inocente? Geralmente a amizade absolve. Perdoa. Se há perdão, o perdão é definitivo. Ele não rotula. A amizade contém uma substância moral muito forte: uma vez perdida a confiança, está perdida em definitivo. Somos moralmente exigentes com os amigos. Muito mais exigentes do que com outras pessoas. A amizade possui um forte conteúdo ético que exige reciprocidade. A amizade, porém, não é apenas estima, admiração, confiança. É também amor. A amizade é a forma específica de amor que tem por objeto uma pessoa que apreciamos e que se comporta de maneira eticamente correta, pelo menos conosco.

Do amigo apreciamos as boas qualidades intelectuais, artísticas, morais. A simpatia, a vivacidade, a solicitude para conosco e para com os outros. Desejamos sempre o melhor para o nosso amigo: o melhor estágio, o melhor emprego, oportunidade, tratamento, presente. No amigo não vemos um rival, queremos vê-lo bem e nos alegramos com o seu sucesso. O sucesso dele é também um pouco do nosso sucesso.

Somente um amigo nos vê por aquilo que somos. Reconhece uma qualidade, uma virtude que estava ali perfeitamente visível, mas que outros não apreciavam porque são indiferentes. Um amigo nunca é indiferente com a nossa dor, nosso sofrimento e, principalmente, nossa alegria. É aquele que intui e invoca a parte melhor de nós: a parte mais bondosa, sincera e amável.

A amizade, uma forma de amar

A amizade é, portanto, uma forma de amar: o amor, então, não é uma inclinação espontânea, um ímpeto da paixão, um sentimento. O amor é um imperativo ético, uma escolha da vontade. O amor é uma decisão humana, e o cristianismo nos ensina que o amor ao próximo é um dever. Eu decido amar! Talvez por isso, Jesus chama seus colaboradores de amigos. Os amigos não são dois iguais que se tratam de maneira igual. São iguais que se tratam de modos personalizados. A amizade é identificação e diferenciação; semelhança e afinidades, projetos e qualidades em comum que alegram o outro.

Em minha experiência de vida sempre busquei uma espiritualidade construída nos relacionamentos, de forma mais concreta, pela ajuda ao próximo e pela construção de amizades saudáveis. Amizades construídas na gratuidade, no zelo e na verdade, sem posses, mentiras, traição e interesses. Foi assim desde os tempos escolares. Ora fui compreendido, ora fui incompreendido, mas nunca deixei de acreditar nas relações de serviço transformadas em amizade.

Acostumei-me desde cedo a conhecer os gostos de meus amigos, seu prato preferido, a música predileta, a leitura agradável. Algumas vezes os presenteei repentinamente com um livro ao lembrá-los no corredor de uma livraria, com um CD ao ouvir seu cantor favorito, com sinais visíveis do amor que se compromete em transformar relações de coleguismo em amizade.

Quando concluía as idéias deste texto, perguntei a um colega de sala de aula, a quem admiro por sua capacidade reflexiva sobre as dificuldades de conviver com o diferente, se é possível aprender com o diferente. Depois de alguns instantes de silêncio ele me respondeu que sim, desde que este alguém “diferente” tenha algo para nos oferecer e nos ajude a crescer, ou ainda, que esteja aberto para a dinâmica da vida. Sábias palavras, e cheias razão!
Talvez isso seja parte da espiritualidade da amizade, quando não temos esse “algo a mais” para oferecermos, seja intelectual, cultural ou social para as pessoas que amamos: oferecemos aquilo que aprendemos na observação delas para sentir o que as faz felizes: um livro, um CD, uma flor, uma palavra amiga. Buscamos ser úteis. É uma forma sutil de dizer: “se não tenho ou não sou aquilo que você merece, receba aquilo que mais admiro em você.”
Ao longo desta espiritualidade que passa pelos relacionamentos não temo em transformar relações funcionais em amizade. Temo, sim, em correr o risco de esquecer meus amigos e voltar a torná-los funcionais à nossa relação.

Vilmar Dal-Bó Maccari

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Meninos não choram: será?

Foto: Lágrimas de homem feito

Disse Maria por ocasião da morte de seu irmão Lázaro: ”Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”. Quando Jesus a viu chorar, e os que estavam com ela, comoveu-se interiormente e perturbou-se. Ele perguntou: “Onde o pusestes?” Responderam: “Vem ver, Senhor!” Jesus teve lágrimas. Os judeus então disseram: “Vede como ele o amava!” (Jo 11, 32-36)

É confortador sabermos que Jesus, ao ver o amigo Lázaro morto, comoveu-se e chorou. As lágrimas de Jesus diante da sepultura de Lázaro tiram dos ombros dos homens modernos o ritual imposto pela sociedade de que homens não choram. As lágrimas de Jesus exaltam sua humanidade repleta de sentimentos, afetos e amizade. Jesus, homem-Deus, ao chorar em público assume para si aquilo que os homens ao longo da história insistem em esconder a “sete chaves” dentro do coração: o medo, a insegurança, a saudade, os sentimentos. Jesus revela para o mundo o que insistimos em esconder dentro do peito.

No curso da história percebemos que os sentimentos estão intrinsecamente alinhados ao conceito do que é belo. Na cultura grega, o belo representava a força e a superação dos limites humanos: o homem belo era, para os gregos, aquele que possuía corpo atlético, bem definido. Já no Império romano o belo era sinônimo de poder e dominação. Em Jesus Cristo, nem a força dos guerreiros gregos e nem o poder de dominação dos tiranos romanos encontram abrigo. O belo, aos olhos de Jesus encontra sua representação na pureza das crianças, na beleza dos lírios do campo, no pecador arrependido, no faminto saciado. O belo, aos olhos de Jesus, desconcertava sua época e se revela mensagem profética para nossos tempos: a beleza, a seus olhos, consistia na capacidade de olhar o diferente, o renegado pela vida, o restolho da humanidade e, ali, encontrar o mais belo: a essência das coisas e das pessoas.

Foi através desta capacidade de enxergar além das imagens, das aparências e dos preceitos que Jesus Cristo conseguiu direcionar seus olhos, carinho, atenção e misericórdia para os sofredores, as prostitutas, os leprosos, os cegos, os coxos, as viúvas e os pecadores. A beleza, para Jesus, não estava na arquitetura dos grandes palácios, nas vestes luxuosas dos governantes, nos banquetes da elite de seu tempo, nos fortes combatentes do Império. Para Jesus, o belo era devolver a dignidade para aqueles que tinham sido espoliados pela vida e tornaram-se o resto do povo de Israel.

Nossa época é tiranizada pela ética de uma discutível estética, porque subordinada a interesses comerciais. Ética que dita os padrões de conduta e as relações da sociedade moderna. Todas as jovens que estão fora das medidas do padrão de mulher alta e extremamente magra, são consideradas “gordinhas”. Mulheres que não chegaram ao casamento aos trinta anos são consideradas “encalhadas”. Os homens também não estão livres desta ética volátil. Todos os jovens que se dão direito aos sentimentos e choram são taxados de fracos e medrosos. O homem acima de cinqüenta anos é considerado velho demais para o mercado de trabalho.

Assim se estabelecem as relações quando a estética, a beleza da moda determinam os padrões de conduta e relacionamentos. Gordas, encalhadas, fracos, medrosos são o resto do Israel de nossos tempos.

A beleza se expressa na transparência dos sentimentos
Jesus não se deixou conduzir pela a ética da estética, da aparência e do superficial. Pelo contrário, não firmou seu conceito de belo na realidade histórica de seu tempo. Iluminou sua conduta, sentimentos e julgamentos por princípios morais não legalistas, mas vivificantes. Promoveu a vida e a felicidade em plenitude.

Ainda hoje ouvimos expressões do tipo: “homens não choram”, ou ainda “chorar é coisa de mulher”. Nossas crianças continuam sendo educadas na pedagogia do endurecimento.

Jesus nos ensinou que homem chora, sim! E chora porque é homem! E somente um homem na plenitude máxima de sua condição é capaz de comover-se com a dor de um filho que sofre, com sua esposa que passa por tribulações, com um amigo de longa data ceifado inesperadamente da vida. Somente um verdadeiro homem é capaz de recordar sua infância, as lembranças de seus pais, o convívio com os irmãos e emocionar-se com uma música que remeta a amores do passado.

As lágrimas derramadas não são atestado de carência afetiva, de fraqueza crônica, de sexo frágil. São sinais de sentimentos, de cumplicidade, de saudade e de amor. A divino-humanidade de Jesus chorou, e com ela chora nossa humanidade: choro que lava os sentimentos, purifica a alma e alivia o coração.

Acredito que o mais vergonhoso na biografia de um homem não é chorar, mas sim, recordar o nome das inúmeras pessoas que ele fez chorarem por sua insensibilidade e dureza de coração. O honroso para a biografia de um homem não está nas vezes em que sorriu, mas nas vezes em que fez alguém sorrir. Assim é a vida, lágrimas no sofrimento, lágrimas na alegria. As lágrimas acompanham o homem ao longo de sua vida. Aos homens lhes restam duas opções: um lenço para secar as lágrimas de sua humanidade ou construir um castelo de pedras onde se esconder de sua própria humanidade. Cada homem escreve sua biografia.

Vilmar Dal-Bó Maccari