quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Jamais me lavarás os pés?

Mosáico Lava-pés - Vaticano -
Se existe um pecado maior do que não amar é o pecado de não se deixar ser amado. Se existe um gesto mais omisso do que cruzar os braços, esse é o não aceitar um abraço amigo quando mais precisamos. Se há algo mais grave do que não colocar os próprios talentos a serviço, é impedir que alguém os coloque. Mais mortífero do que a incapacidade de amar é a capacidade de esterilizar o amor alheio.

O evangelho de João nos narra uma cena instigante: Jesus inclinado diante de Pedro tentando lavar-lhe os pés e esse, sem compreender o gesto diaconal de serviço do Mestre, resiste impetuosamente exclamando: “Jamais me lavarás os pés”! (Jo 13,8) Jesus, o divino pedagogo, responde ao “cabeçudo” discípulo: “Se assim não fizer, não terás parte comigo”.

A água derramada nos pés de Pedro simbolizou a água que o fez tornar-se parte de Jesus. Talvez tenha sido aquela água a dose necessária para lavar o peso da consciência e do arrependimento que, mais tarde, o consumiria por ter negado o Mestre três vezes ou, quem sabe, tenha sido aquela água a força maior para Pedro confessar ao próprio Senhor sua profissão de fé: “Senhor, tu sabes tudo, tu sabes que eu te amo” (Jo 21,17)

Mais do que permanecer com os pés retraídos, cobertos e secos ao tentar evitar o lava-pés, Pedro corria o risco de não fazer parte do Senhor, não conhecer seu amor e não amar como o Mestre amou.
Muitos gestos, frutos de nosso temperamento intempestivo, podem levar-nos ao fechamento de coração e a impedir-nos de conhecer o amor, e a fazer experiência de Deus. Por isso, permita-se:

Deixe-se abraçar
Permita-se receber um abraço amigo, afetuoso, apertado, inesperado. Sentirá a ternura com que Jesus abraçava as crianças. Você vai se tornar uma pessoa mais terna, afetuosa e segura.

Deixe-se beijar
Permita receber o beijo do carinho, da fidelidade, da paz. Vivenciará o mesmo sentimento de pertença que Jesus sentia quando era acolhido com um beijo ao entrar numa casa. Você vai se tornar uma pessoa mais acolhedora, comprometida e zelosa.

Deixe-se conhecer
Permita que as pessoas o conheçam e que elas o descubram. Experimentará o sentimento de comunhão e unidade como Jesus sentiu ao dizer: “Vinde e vede onde moro” (cf. Jo 1,38). Vai se tornar uma pessoa mais amiga, comunitária e gentil.

Deixe-se amar
Permita que o amem e conhecerá o amor. Sentirá os nobres sentimentos de Jesus. Vai ser uma pessoa mais equilibrada, alegre e santa.

Retomando à cena do Lava-pés: num primeiro momento, Pedro não queria ter os pés lavados pelo Mestre, mas, quando percebeu que a partir daquele gesto de auto-exclusão corria o risco de não fazer parte de Jesus, optou por imediatamente ser lavado.

Mesmo que tenhamos inúmeros motivos para desacreditarmos e desistirmos da vida, não percamos a oportunidade de nos abrirmos para o amor. Talvez seja ele a água mais pura e cristalina derramada sobre os nossos pés e corações, o melhor antídoto para vencermos a prática esterilizante do amor do outro.



Vilmar Dal-Bó Maccari

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Contar bolinhas na casa da Nona

Foto: crianças-brincando

Pequeno costumava nas férias escolares passar alguns dias na casa de meus Nonos (Avós), no interior. Um lugar lindo, cheio de encantos para uma criança. Havia animais, riachos, cachoeiras, montanhas, pastagens verdes, açudes para pesca e muitas trilhas a serem exploradas. Como toda criança, fértil em imaginação, sempre havia para mim um tesouro por ali, prestes a ser descoberto, sem falar das deliciosas comidas preparadas no fogão a lenha pelas mãos da Nona: polenta, arroz branco, lingüiça, queijo e, indispensavelmente, na janta de toda noite, minestra com radicce: espécie de sopa de feijão com arroz branco, acompanhada de folhas verdes, amargas. Verdadeiramente deliciosa!

Para mim, os dias de férias na casa da Nona equivaliam a uma colônia de férias: Disney World, Beto Carreiro, Parque Aquático, nada se comparava à sensação de estar na “Grande Floresta”. Os dias que lá passava eram suficientes para esquecer o programa da Xuxa, Trapalhões, desenhos animados e leituras de gibis. Bom mesmo era correr atrás dos animais, aventurar-me mata adentro, fazer cabana na mata, caçar vaga-lumes e aprisioná-los em vasilhas.

No final de um dia tão agitado, cheio de “aventuras”, chegava sempre a hora do banho, a janta, “minestra com radicce” e, logo após, a reza do Terço. O Nono pegava um velho rosário dependurado num prego na parede e começava a reza do Terço. Para mim, este era o momento mais cansativo do dia, um verdadeiro sonífero.

Durante o dia meus Nonos poupavam-me de trabalhos, deixavam-me livre pra brincar, mas, na hora do Terço não havia escolha: tinha de participar mesmo caindo de sono. Eram muitas Ave-Marias, entre um mistério e outro a invocação de São Donato, Santo Antônio e Nossa Senhora “Madre di Dio”. Para mim, aquilo era uma verdadeira tortura: contar bolinhas do Rosário, e caindo de sono.

Terminadas as férias, era hora de retornar à casa dos pais com muitas novidades. Na escola não me cansava de contar para meus amigos as inúmeras aventuras vividas na casa de meus Nonos. É verdade que aumentava um pouco, próprio da imaginação criativa de toda criança.

Hoje, um pouco mais maduro, e ainda com alma de criança, vejo quão sadias eram minhas férias na infância. Quando fecho os olhos e relembro cada momento vivido sinto o cheiro da comida, o barulho dos animais e, o mais impressionante, o velho Nono recitando o Rosário acompanhado da Nona que respondia, com toda a devoção, enquanto finalizava a lavação da louça do jantar: Santa Maria. Madre di Dio.

Gosto de pensar que foram aquelas Ave-Marias do passado, incompreendidas nos tempos de criança, a maior força de minhas lembranças hoje. Sem elas, talvez, eu não teria retornado inúmeras vezes à minha infância naquela casa. Não disponibilizava TV a cores, vídeo-game, Nescau, bolachas recheadas e brinquedos eletrônicos. Acredito que foram aquelas Ave-Marias que me deram a simplicidade para viver durante as férias, mesmo que por curto espaço de tempo, como deve ter vivido o menino Jesus: no campo, na simplicidade, alegria, liberdade e oração.

Quantas saudades das férias na casa dos Nonos! Quanto bem me fez aquele “sonífero” Terço que desperta no homem inacabado de hoje o menino simples de outrora.

Vilmar Dal-Bó Maccari

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Joelhos e corações ralados: o mertiolato da esperança

Foto: criança ferida
Parei para pensar: por que os joelhos ralados da infância cicatrizam mais rápido do que o coração ferido de “homem feito”. Lembrei-me dos tempos em que as gotas de mertiolato ardiam com intensidade quando derramadas sobre as feridas mas, mesmo assim, não cessava o desejo de voltar a brincar, correr riscos, desafiar os limites e novamente tornar a ralar os joelhos.

Com o coração é tudo diferente. Quando este é ferido, machucado, magoado, mesmo que seja derramado nele um frasco completo de mertiolato, ainda encontra dificuldades para voltar a ser o que foi. O coração de “homem feito” não é como os joelhos de crianças, o mertiolato aplicado sobre ambos pode até ser o mesmo, conter a mesma fórmula, provocar o mesmo ardor, mas o tempo e o processo de cura e cicatrização são diferentes.

Os joelhos ralados de criança, por mais vezes que sofram um grave acidente, nunca se cansam da esperança de recomeçar, temem a dor e o ardor provocado pelo mertiolato, mas estes não são maiores do que o desejo de voltar a brincar.

O coração, por sua vez, uma vez ferido encontra dificuldades para pulsar no mesmo ritmo, fecha-se ao recomeço e a novas oportunidade que a vida pode lhe oferecer, encoleriza-se pela raiva e pelo ódio, atem-se ao ardor doloroso do mertiolato e não consegue vislumbrar a cura que esse pode lhe oferecer.

Um velho dito popular diz: “O que arde cura”. Somente aquilo que possui a propriedade de arder é capaz de curar: o perdão, a misericórdia e a compaixão são os melhores mertiolato do coração, são verdadeiros antídotos que fazem arder, pois exigem abertura, humildade, reconhecimento e benevolência para conceder e receber a cura através do perdão.

Na passagem dos discípulos de Emaús (Lc 24, 13-35) os discípulos comentavam: “não nos ardia o coração quando Ele nos explicava as Escrituras?”. Jesus, com seus ensinamentos, sua presença amiga e com o partir do pão, a Eucaristia, curava o coração dos discípulos feridos pela frustração, pelo desânimo e pelo fracasso de terem perdido o Mestre no drama da cruz. Jesus derruba sobre eles o mertiolato da esperança e os faz novamente acreditar: “não ardia o nosso coração quando Ele nos explicava as Escrituras?”.

Todos precisamos derramar um pouco de mertiolato sobre nossas feridas: o mertiolato da fé quando tudo parece obscuro, o mertiolato da esperança quando nada mais faz sentido na vida e, quem sabe, o mertiolato da caridade, quando nos sentimos abandonados. Todos nós somos carentes de curas. E. não esqueçamos, nas dores do coração, que melhor aplica mertiolato é o Pai. Ele permite as quedas, mas logo vem sarar as feridas.

Aparentemente, os joelhos ralados são mais fáceis de tratar do que as feridas do coração: basta derramar algumas gotas de mertiolato e uma porção de disposição para recomeçar e tudo parece resolvido, enquanto que o coração, mesmo que seja derramado sobre ele “todo o mertiolato do mundo”, se não houver algumas doses de humildade, simplicidade e amor tudo é em vão. O que arde cura, mas somente o amor cicatriza!
Não tenhamos medo de mertiolato, principalmente dos mertiolatos da espiritualidade, da oração, do sacrifício e da caridade. Como companhia, sempre chega um soprinho gostoso de quem o aplicou e as mesmas e tradicionais palavra: “viu só?, nem doeu”. E não dói mesmo! Mertiolato só dói quando se esvai a esperança daqueles que estão feridos.

Vilmar Dal-Bó Maccari

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Dona Lúcia e seu avental

Maria Madalena

Dona Lúcia, mulher “sem fineza”, pessoa que conheço desde os tempos de infância, é uma daquelas senhoras que vale ser conhecida. Coração de ouro, esposa zelosa, mãe dedicada, avó coruja, mulher de fé. Talvez dona Lúcia seja igual a “tantas e tantas” outras senhoras que se dedicam a fazer o bem às pessoas. Bem, eu não conheço “tantas e tantas” outras senhoras com os mesmos predicados de dona Lúcia, por isso, atenho-me a ela, ou melhor, àquilo que aprendi com ela.

Dona Lúcia é mulher do avental, e quem veste avental não tem medo nem preguiça para o serviço: limpa, cozinha, trabalha, serve. O avental de dona Lúcia é um sinal-testemunho. Ela vive com o avental manchado para preservar e poupar os que estão à sua volta: filhos, parentes, amigos. As manchas no avental garantem que nem um pingo de sujeira caia nas roupas de seus queridos.

Assim deveria ser nossa vida: vestir o avental da gratuidade, do favor e da gentileza. Quem sabe, filosofar menos e servir mais!

Muitas vezes somos tentados pelo jogo da aparência, do conhecimento letrado e da intelectualização desmedida: aposentamos o avental na gaveta e nos cobrimos com as vestes luxuosas da arrogância, soberba, prepotência e vaidade.
As vestes luxuosas são mais atraentes do que o avental da dona Lúcia, mas não carregam marcas de amor: o bordado ponto-cruz da vovó, as manchas da massa do bolo de cenoura, o vermelho do molho-de-tomate do cachorro quente, as manchas de óleo da fritura. As vestes luxuosas não lembram os almoços de domingo, a reunião de família, as louças lavadas, a visita dos netos, o prato preferido dos filhos, a família reunida.

Felizes os que preferem o avental, a simplicidade, pessoas e relacionamentos.
Na última Ceia, o próprio Jesus vestiu o avental da simplicidade para lavar e enxugar os pés dos discípulos. Deixou-nos o gesto concreto do serviço: seu avental é sua estola diaconal.
Nossas famílias perdem a espiritualidade do avental, serviço, simplicidade e união. Quanto mais se aposenta o avental, mais se esquece seu sentido.

Um avental antigo, surrado, servido, eterniza recordações, memórias, lembranças. Uma veste luxuosa, ao longo do tempo sai da moda, fica em desuso e acaba num brechó.
Vaidade, soberba, conhecimento, tudo passa, mas, o gesto bonito de simplicidade de quem veste o avental, não passa.

Os pais não gostam de apresentar aventais para seus filhos: é fora de moda, preferem as parafernálias eletrônicas. Tudo passa!
Quanto a dona Lúcia, sou feliz por vê-la feliz com seu avental surrado. - Quem herdará o seu avental? Todos, lá em casa, estamos ocupados demais com os equipamentos que facilitam a vida. Triste sina: pobre e órfão avental, pobres órfãos sem avental!

Vilmar Dal-Bó Maccari