quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Orelhinhas-de-burro: o bolinho do amor

Foto: Medida certa
Carrego comigo a permanente lembrança de idosa e piedosa senhora que despertava todos os dias logo ao nascer do sol, inclusive nos domingos, feriados e dias santos para preparar “orelhinhas-de-burro”, espécie de bolinhos de chuva fritos, ideal para o café da manhã. Os ingredientes da receita eram muito simples: algumas medidas de trigo, açúcar e água, tudo bem misturado, amassado, fritos em óleo quente e passados na canela com açúcar. Mesmo sendo uma receita de tamanha simplicidade, as “orelhinhas-de-burro” eram muito saborosas. Toda gordura absorvida no processo de fritura era cuidadosamente escorrida de forma artesanal em pedaços de papel-presente ou em sacos de pães vazios. Os guardanapos, sinal da modernidade, não tinham alcançado o processo de preparo.


Dado o devido reconhecimento ao delicioso sabor das “orelhinhas-de-burro” é impossível não recordá-las sem lembrar-se de outros sabores e sentimentos que as impregnavam. Comer aqueles bolinhos era mais do que deliciar-se com o gosto da canela enxertada no trigo, umedecida no óleo, mas sentir tudo o que ele simbolizava. Era a demonstração pura de carinho e dedicação de quem se punha a servir preocupada com a satisfação e o prazer do outro. Um gesto de pontualidade e compromisso materno, garantia de mesa posta e acolhedora: um mimo constante.


Aqueles bolinhos não eram frutos de uma obrigação, mas de um gesto concreto de amor. Amor não platônico, reduzido aos beijos, elogios e afagos, mas amor concreto, comprometido, permanente e gratuito. Amor que alimenta, testemunha e sustenta a alma.

A beleza da espiritualidade é esta: perceber no cotidiano da vida os sinais de Deus agindo no concreto da vida. É no humano das pessoas que experimentamos Deus atuando em nosso favor. Somente mãos generosas, conduzidas por nobres virtudes e sentimentos de tamanha proporção são capazes de transformar trigo, açúcar e água em bolinhos repletos de amor.

Fazer “orelhinhas-de-burro” em situações eventuais, seguindo as medidas da receita é muito prático e, com o mínimo de instrução, qualquer pessoa consegue prepará-los. Porém, fazer “orelhinhas-de-burro”, diariamente, na gratuidade, seja inverno ou verão, pensando no sustento do outro, permitindo-lhe uma refeição com novidade e que atenda ao paladar de quem o degusta é muito mais do que fazer bolinhos: é amar fazendo bolinhos.

Quando somos conduzidos pelo amor de Deus e deixamo-lo conduzir nossa rotina, amamos fazendo e fazemos amando. Assim deve ser a nossa espiritualidade, a espiritualidade da santificação. Somos santos não porque fizemos bolinhos perfeitos seguindo fielmente as receitas, as normas e as leis, mas, somos santos porque fizemos bolinhos com carinho, com amor, preocupados com o bem-estar e com o propósito de saciar a fome do outro. Essa prática de amor, por sua vez, não invalida as receitas, as normas e as leis, mas nos ensina que bolinhos sem amor são apenas bolinhos.


Esta senhora idosa e piedosa deixou-me a receita das “orelhinhas-de-burro”, mas, acima de tudo, uma receita de amor. Ainda que estejamos famintos na saudade, e desorientados nas medidas de trigo, açúcar e água, sabemos que a consistência, “ponto”, “liga” para nossa massa nascem do amor, somente do amor, e este nos saciará.


Vilmar Dal-Bó Maccari