terça-feira, 29 de maio de 2012

As letras que falam de Deus















Há duas semanas fui surpreendido com um e-mail recebido de um pastor evangélico que se diz leitor assíduo de meu blog – Gotas de Espiritualidade. Neste mesmo e-mail ,ao longo de uma bela reflexão e com muita profundidade, escreve-me o pastor: “Tome cuidado com suas linhas, o mundo não precisa de mais um literato, o mundo precisa do testemunho de homens de Deus”.  Quando li este “conselho” fiquei um tanto quanto desconcertado.  A minha primeira impressão foi que este senhor estava de alguma forma tentando fazer proselitismo comigo, mas, no decorrer de suas ponderações, percebi que ele aprofundava com muita propriedade algumas temáticas que insisto em abordar, e o fazia com muita sabedoria.  Logo tomei consciência de que estava diante de um leitor que conhecia com maestria meus textos e, o mais importante, captava a intensidade de meus sentimentos. É impressionante como a fé ajuda a ler a partitura da alma.  E isso não depende de Igreja!
Esta frase escrita pelo pastor ficou entranhada em meu pensamento: “Tome cuidado com suas linhas, o mundo não precisa de mais um literato, o mundo precisa do testemunho de homens de Deus”. Movido por esta provocação que se tornou para mim uma inquietação, resolvi ler meus últimos artigos, revisados e publicados, e sentir o que eles significavam para mim, hoje. Uma experiência fantástica! Voltar nas letras, nas linhas, nos sentimentos. Na origem daquilo que creio e acredito e me faz escrever, ou melhor, viver. Esta aventura de voltar à minha redação, mergulhar na minha primeira inspiração, que talvez não seja minha, fez deparar-me com uma possível e sutil evolução poético-literária, algo que é bom e desafiante, porém, um tanto quanto perigosa. Perigo que poderá estar me distanciando daquilo que é primordial no que me proponho: a simplicidade de testemunhar as coisas de Deus. A chamada de atenção deste pastor seria um alerta ao risco de eu estar derivando para uma reflexão de prateleira ao estilo “auto-ajuda” ao invés de um testemunho concreto de vida.
É verdade! Quanto tempo dispensado na busca da palavra certa, da melhor concordância, do melhor termo, a conexão das idéias, a coesão do texto, a necessidade de segurar o leitor. Talvez a simplicidade tenha dado lugar à técnica, e a técnica esvaziado os sentimentos do autor. Senti verdadeiramente o risco de estar distanciando-me da experiência de Deus. De estar me perdendo na minha própria letra. Não basta escrever as coisas de Deus! É preciso escrever os testemunhos que refletem com a vida as coisas de Deus.
Ao falar de Deus não podemos abordá-lo e esgotá-lo como um estilo literário qualquer. Percebi que podemos correr o risco de falar de Deus idolatrando nossas potencialidades: capacidade de articular o pensamento, redação, síntese, porém, a experiência de Deus não é um gênero literário. Nela emerge conceitos, filosofias e teologias, mas, principalmente, a concretude da vida. Sem a vida, a sabedoria é reduzida ao conhecimento, e bem sabemos que todo conhecimento é limitado. Deus, não! Deus é o Deus da vida! Da concretude, da experiência, do testemunho.
Quanta diferença faz ler um texto aos olhos da técnica e aos olhos da fé. Esse pastor fez com os olhos da fé. Com seus olhos de fé conseguiu captar onde termina a alma do autor e onde começa a técnica. Este é um risco constante de quem se propõe pensar, refletir e viver as coisas de Deus. Risco de perder-se entre o embate da vaidade e da simplicidade. Precisamos de literatos, mas, sobretudo, de homens que testemunhem com a vida as coisas simples de Deus. Muito obrigado, pastor! Sua fé confirma a minha!  E juntos, ainda que em bancos e em paredes diferentes, testemunhamos aquilo que é maior: a alegria de viver em Cristo! Quem sabe, um dia, quando conseguirmos com a simplicidade vencermos nossos esquemas técnicos derrubaremos estas paredes que nos separam e sentaremos lado a lado no mesmo banco.  Como espero!

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Maio com amor: Maria, Princesa Isabel e Dona Ilca




Há quem diga que maio é o mês mais feminino do ano. Também pudera: o calendário civil reserva para maio agradáveis festividades femininas como o dia das mães, o mês das noivas, a abolição da escravatura, assinada por uma mulher. A Igreja Católica, por sua vez, dedica o mês de maio a Maria, o mês mariano. Maio é verdadeiramente o mês mais rosa do ano, se é que podemos associar a cor rosa à feminilidade sem cairmos no dualismo: menino azul e menina rosa.

Até hoje, tudo o que li e escutei sobre a figura materna pouco me chamou a atenção. Nada de muito criativo. Geralmente aproximam a figura de mãe à imagem de Maria e a comparam com um “anjo”,como a flor mais bela do jardim de Deus”, “aquela que atualiza Maria no cotidiano da vida”. Nada contra a figura de Maria, e nada contra a semelhança materna que liga toda mãe à maternidade divina de Maria. Mas, verdade é que quando se propõe refletir a singularidade de ser mãe, nada de muito novo e criativo, a meu ver, emerge. Por isso, com todo respeito aos Mariólogos – teólogos que se propõem estudar a figura de Maria no Mistério da Revelação e da Encarnação de Deus – a melhor forma para falar de mãe é ir à concretude de uma mãe e, de preferência, à nossa própria mãe. Lá encontraremos não a mulher perfeita, angélica e virginal, mas o conceito mais próximo e concreto que conhecemos do ser mãe.

Quem nunca parou para recordar sua mãe? Os tempos de outrora, tempos da infância, tempos nos quais seus cabelos não eram grisalhos, sua pele não revelava as marcas e a expressão do tempo e do cansaço. Ao recordar sua mãe, quem não lembra os momentos em família, as alegrias vividas, uma história jocosa, tristezas compartilhadas, dúvidas e dificuldades? Quando recordamos nossas mães recordamos nossa vida, recordamos o filho que fomos, quando acertamos e quando erramos. Recordamos quando fomos intransigentes, inconseqüentes e irresponsáveis.

É impressionante a capacidade que toda mãe tem de fazer recordar a vida. Na medida em que começamos a refletir a figura de nossa mãe, acabamos no quintal de nossa própria vida: nossa personalidade, nossas escolhas, aquilo que fizemos ou deixamos de fazer ao longo do tempo.

Em nossa mãe, a nossa vida

Mãe é sempre uma recordação. Ora positiva, ora negativa. Quando a recordamos tomamos consciência do que somos e somos convidados a uma avaliação existencial: como filho, homem, ser humano. Acredito que toda mãe é um lugar teológico para seu filho pois, pela mãe, o filho se encarna, ganha vida, vem ao mundo, é instruído e acontece. Quando o filho recorda sua mãe recorda sua humanidade. De onde veio, qual é o seu berço, a sua história, o seu DNA. Quantos e quantos filhos negam sua história de vida, suas raízes e verdades, fruto bem provável de um desencontro na relação materna.

Em toda mãe o filho vê o tamanho de suas verdades e a dimensão de suas limitações. Na mãe, o filho pondera, mais cedo ou mais tarde, o que fez e como lidou com aquele velho e sábio “conselho de mãe”. Diante de sua mãe o filho responde no silêncio de sua consciência se o colocou na lata de lixo ou na prática da vida. Quando recorda a memória de sua mãe o filho nunca “faz de conta”. O juízo moral aflora e a ultima pergunta que insiste a ser respondida é: Fui ou não um bom filho para minha mãe? E esta pergunta insistirá em ser respondida independente dos valores ou da intensidade afetiva que a mãe em sua vida dispensou para com o seu filho. Por mais que o filho não queira, é impossível não recordar.

Quando os mariólogos falam que a função de Maria é apontar para Jesus, percebemos esta verdade teológica no concreto da vida. Quando falamos de nossa mãe chegamos a nós mesmos: quem somos? onde estamos? o que nos tornamos? O “mocinho” que nossa mãe sonhava, ou o “vilão” que temia?

Toda mãe tem essa capacidade de fazer o filho recordar-se. Mãe tem esse dom, mesmo que distante, longe, em outra dimensão. Capacidade de nos fazer recordar a vida, pelas lembranças, saudade, ausência, distância, ou por um simples telefonema no cair da tarde. Mãe é coisa de Deus! Nela nos encontramos. Nela sentimos a ação de Deus na nossa vida.

E para não dizer que não falei das noivas e da Princesa Isabel, desejo a todas as noivas que um dia sejam excelentes mães e mando lembranças a Dona Teresa Cristina de Bourbon, mãe da Princesa Isabel, a mãe da liberdade, pelo menos histórica, do negro, sem esquecer, claro, de Dona Ilca Dal-Bó, minha mãe. Porque essa é a minha melhor teologia. A noiva mais comprometida com a minha felicidade, a princesa da minha liberdade.

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sábado, 5 de maio de 2012

Por trinta moedas de prata


   Quando Jesus revelou na última ceia o desígnio de traição: “Um dentre vós me trairá” (Jo 13, 21), fez de forma tão pedagógica a ponto de não delatar e pronunciar o nome de Judas, pois bem sabia que, se revelasse publicamente o nome do traidor, a ceia poderia terminar em um “linchamento” público. Certamente se, naquela hora, Jesus tivesse revelado o desígnio de traição implantado pelo diabo no coração e na mente de Judas pronunciando o seu nome, seus amigos discípulos não o perdoariam e partiriam para a agressão física; a Ceia do amor tornar-se-ia a ceia do “acerto de contas”. Todos tinham fixos na mente que Jesus seria o novo Rei de Israel e, desta forma, tudo fariam para impedir aquele que ousasse contrariar os planos de poder. Os evangelhos narram, inclusive, que andavam armados. Disse Jesus: “Pedro, guarda a tua espada” (Jo 18,11). Jesus quando revelou a traição teve a sutileza de fazê-lo com um gesto: o gesto de dar o pão ao que haveria de traí-lo: “Ao que eu der o pedaço de pão molhado” (Jo13,26).
A narração deixa claro que Jesus não falou diretamente aos Doze que Judas seria o discípulo símbolo da traição e da corrupção humanas. Não revelou publicamente seu nome, para dar-lhe, quem sabe, uma possibilidade de evitar um mal maior. Porém, a decisão de Judas foi respeitada: “Faz o que deves fazer” (Jo 13,27). Como quem diz: Judas, a tua liberdade será preservada; não sou o Deus da manipulação, da opressão; sou o Deus da liberdade, que respeita as decisões humanas. Faz o que deves fazer! E na liberdade, Judas escolheu livremente entregar Jesus ao governo romano e ao poder religioso de Jerusalém pela quantia de trinta moedas de prata.  O respeito de Jesus perante a decisão de Judas é uma prova da sacralidade da consciência e da liberdade do homem perante Deus. Deus respeita a liberdade humana, suas escolhas ao ponto de não interferir mesmo quando ela coloca seu Filho diante da morte.
A liberdade nos permite acertar e errar. Na liberdade, Pedro disse: “Senhor, tu sabes que eu te amo”.  Na liberdade Judas vendeu Jesus por trinta moedas. A liberdade, por si só, pode ser um caminho de encontro e desencontro. Somente o bom uso da liberdade humana pode assegurar a dignidade e o equilíbrio da vida que é repleta de possibilidades e convites. Diz Paulo: “Tudo posso, mas nem tudo me convém”, ensinando-nos que nem todas as possibilidades levam ao bem.
O bom uso da liberdade já foi tema de discursos eloqüentes de filósofos, teólogos, moralistas, crentes e ateus.  Diferentes pontos de vista, diversas opiniões, mas uma coisa em comum: a contribuição fundamental da Ética, da Moral e do Direito para o bom exercício da liberdade. Contribuição que ilumina o agir humano naquilo que é certo ou errado, lícito ou ilícito, bem ou mal. Ainda que se altere a gramática ou a forma conceitual das palavras para expressar o exercício da liberdade e sua finalidade, uma coisa é certa: os valores morais e éticos são o sustento daqueles que se propõem viver segundo um ideal maior.
Aos cristãos, homens identificados com Jesus de Nazaré, cabe sintonizar os passos com os passos de Jesus, ou seja, com a ética cristã. Ética norteada pela fé, palavras e gestos de Jesus. É o agir cristão no mundo. Com base no agir ético e moral é que os cristãos se fazem reconhecer. A ética cristã não está baseada nos limites paroquiais, mas sim, nas atitudes e nas decisões que os cristãos tomam nos embates da vida. Dentro e fora da igreja. É na vida que o agir ético e moral é provado. É no dia a dia que revelamos nossa opção fundamental, onde estão fundados nossos passos, nossas escolhas e decisões. Um bom cristão faz isso tudo a partir do testemunho da fé em Jesus.
Há quem diga que ser cristão dentro da sacristia é fácil, o difícil é ser cristão no mundo,  onde cada vez mais impera a filosofia “quem pode mais chora menos”, dos valores segundo os ditames e mesuras da beleza e da estética, do consumismo desenfreado, da corrupção pública e da sexualidade banalizada. Assumir um ethos cristão como projeto de vida não é nada fácil. Nunca foi! Não é à toa que tantos homens e mulheres ao longo da história foram martirizados por causa da fé. Seguir um ethos cristão hoje é assumir o martírio social; o bullying de ser taxado de “carola”, “cabeça fraca”, “alienado”, “démodé”, “quadrado”, “ultrapassado”, “doente”, “fora da casinha”, “viajão”, “santinho de pau oco”, “bonzinho para outros verem”, entre tantos outros.
Dizia Monsenhor Francisco de Salles Bianchini: “Tirem um líder religioso de uma comunidade e serão necessários dois policiais a mais para vigiar e garantir a paz da comunidade”. Quando tiramos os princípios que norteiam o agir humano de nossa cartilha de vida, a vida sucumbe. Sucumbe nas relações familiares, afetivas, sociais, profissionais. Sem princípios valorativos a família se torna um grupo de convivência sem sustento, as relações afetivas relações de puro prazer desmedido, e as relações sociais um jogo de oportunismo e vantagens.
Voltando à última Ceia, vemos que a figura de Judas é um pouco a figura do mundo frágil dos que se deixam seduzir por trinta moedas de prata. Dos que vacilam em seus princípios diante de um champanhe importado, de uma badalada festa, de uma roupa de marca, de um conchavo lucrativo, de uma oportunidade profissional, de uma noite de sexo fácil. A liberdade pode hoje ser corrompida por trinta moedas de prata, como no passado.
Perante a esta realidade situa-se a importância de nortearmos nossa liberdade com bons valores. Não somos juízes de condenação de ninguém. Todos nós dependemos da misericórdia e da benevolência de Deus: Pedro, João, Tiago, Judas, eu e você. Todos contamos com sua infinita misericórdia.
Assumir um ethos cristão, um comportamento evangélico não é ficar apontando com o dedo ríspido aos que não assumiram este projeto existencial como propósito de vida. Pelo contrário, é dar testemunho e fazer-se um com aqueles que não crêem por falta de testemunho.
Somos barro, somos homens, somos trinta moedas de prata. Somos filhos, somos criaturas, somos bons. Somos um acontecimento único! Somos dignidade! Somos aquilo que trinta moedas de prata não compram. Somos filhos de Deus!
Vilmar Dal Bó Maccari