sábado, 13 de novembro de 2010

Amizade: chegarmos juntos

Foto: Quando formos grandes

Já não vos chamo servos, mas amigos (cf. Jo 15,15).

A amizade é uma forma de amor. Em primeiro lugar requer liberdade e conduta ética de comportamento. Nenhuma forma de amor respeita tanto a liberdade do outro como a amizade que chega a ponto de extrema delicadeza sem exigir explicações. A amizade difere das demais formas de paixões e amores porque escolhe seus objetivos com critérios morais e se comporta moralmente em relação a eles. Amar, escrevia Santo Tomás de Aquino, é querer o bem do outro. A amizade acontece quando queremos a felicidade de alguém e este corresponde a nosso benquerer.

Do amigo esperamos que compartilhe a imagem que temos de nós mesmos ou, pelo menos, que não se afaste dela. Dois amigos devem ter imagens de reciprocidade e semelhança. Não idênticas, naturalmente, pois então não haveria nada para descobrir, mas sem excessivas dissonâncias. De um amigo, portanto, é de se esperar que não nos entenda mal. Se isso acontece, é um alerta ao relacionamento. Um amigo pode discordar de nossas convicções de fé, visão política, modo de conceber o mundo, mas ele é quem vai entender-nos com maior facilidade em relação aos outros, pelo simples fato de ser nosso amigo. É ele que mais conhece nossa história de vida, nosso meio cultural, nossa formação, nossas limitações e nossos traumas. É o amigo que nos conhece a partir do que somos, diferentes dos outros que nos julgam a partir do que aparentamos. A confiança, numa relação de amizade, é muito maior do que as diferenças. O amigo não é um guru que detém a verdade: é um chegar juntos à mesma conclusão a partir de pontos de vista diferentes.
Nos relacionamentos existe sempre um julgamento, este é inerente a toda relação. Culpado ou inocente? Geralmente a amizade absolve. Perdoa. Se há perdão, o perdão é definitivo. Ele não rotula. A amizade contém uma substância moral muito forte: uma vez perdida a confiança, está perdida em definitivo. Somos moralmente exigentes com os amigos. Muito mais exigentes do que com outras pessoas. A amizade possui um forte conteúdo ético que exige reciprocidade. A amizade, porém, não é apenas estima, admiração, confiança. É também amor. A amizade é a forma específica de amor que tem por objeto uma pessoa que apreciamos e que se comporta de maneira eticamente correta, pelo menos conosco.

Do amigo apreciamos as boas qualidades intelectuais, artísticas, morais. A simpatia, a vivacidade, a solicitude para conosco e para com os outros. Desejamos sempre o melhor para o nosso amigo: o melhor estágio, o melhor emprego, oportunidade, tratamento, presente. No amigo não vemos um rival, queremos vê-lo bem e nos alegramos com o seu sucesso. O sucesso dele é também um pouco do nosso sucesso.

Somente um amigo nos vê por aquilo que somos. Reconhece uma qualidade, uma virtude que estava ali perfeitamente visível, mas que outros não apreciavam porque são indiferentes. Um amigo nunca é indiferente com a nossa dor, nosso sofrimento e, principalmente, nossa alegria. É aquele que intui e invoca a parte melhor de nós: a parte mais bondosa, sincera e amável.

A amizade, uma forma de amar

A amizade é, portanto, uma forma de amar: o amor, então, não é uma inclinação espontânea, um ímpeto da paixão, um sentimento. O amor é um imperativo ético, uma escolha da vontade. O amor é uma decisão humana, e o cristianismo nos ensina que o amor ao próximo é um dever. Eu decido amar! Talvez por isso, Jesus chama seus colaboradores de amigos. Os amigos não são dois iguais que se tratam de maneira igual. São iguais que se tratam de modos personalizados. A amizade é identificação e diferenciação; semelhança e afinidades, projetos e qualidades em comum que alegram o outro.

Em minha experiência de vida sempre busquei uma espiritualidade construída nos relacionamentos, de forma mais concreta, pela ajuda ao próximo e pela construção de amizades saudáveis. Amizades construídas na gratuidade, no zelo e na verdade, sem posses, mentiras, traição e interesses. Foi assim desde os tempos escolares. Ora fui compreendido, ora fui incompreendido, mas nunca deixei de acreditar nas relações de serviço transformadas em amizade.

Acostumei-me desde cedo a conhecer os gostos de meus amigos, seu prato preferido, a música predileta, a leitura agradável. Algumas vezes os presenteei repentinamente com um livro ao lembrá-los no corredor de uma livraria, com um CD ao ouvir seu cantor favorito, com sinais visíveis do amor que se compromete em transformar relações de coleguismo em amizade.

Quando concluía as idéias deste texto, perguntei a um colega de sala de aula, a quem admiro por sua capacidade reflexiva sobre as dificuldades de conviver com o diferente, se é possível aprender com o diferente. Depois de alguns instantes de silêncio ele me respondeu que sim, desde que este alguém “diferente” tenha algo para nos oferecer e nos ajude a crescer, ou ainda, que esteja aberto para a dinâmica da vida. Sábias palavras, e cheias razão!
Talvez isso seja parte da espiritualidade da amizade, quando não temos esse “algo a mais” para oferecermos, seja intelectual, cultural ou social para as pessoas que amamos: oferecemos aquilo que aprendemos na observação delas para sentir o que as faz felizes: um livro, um CD, uma flor, uma palavra amiga. Buscamos ser úteis. É uma forma sutil de dizer: “se não tenho ou não sou aquilo que você merece, receba aquilo que mais admiro em você.”
Ao longo desta espiritualidade que passa pelos relacionamentos não temo em transformar relações funcionais em amizade. Temo, sim, em correr o risco de esquecer meus amigos e voltar a torná-los funcionais à nossa relação.

Vilmar Dal-Bó Maccari