quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Osculum de amor – o beijo

O beijo de primavera ( Gustav Klimt)

O beijo aparece na história da humanidade por volta do ano de 2.500 AC, na Índia. Acreditavam que ao beijar as paredes e as colunas dos templos, lugares de encontro com o sagrado, estariam estabelecendo um contato de intima relação com as entidades divinas. O beijo era muito comum entre os povos gregos e os romanos: os guerreiros, ao retornarem dos combates, eram recebidos com calorosos beijos. Os gregos adotaram-no como prova de reconhecimento. Mas foi com os romanos que o beijo ganhou a história ocidental. Os imperadores permitiam que os nobres beijassem seus lábios em sinal de soberania e os menos nobres suas mãos, aos súditos ofertavam-lhes os pés, sinal de culto, referência e servidão. Havia três categorias de beijo: o basium, entre conhecidos, o osculum entre os amigos, e o suavium, entre os amantes.

Na Sagrada Escritura, envolto pela tradição semítica, o beijo ou o ato de beijar aparecem vinte e três vezes. Reconhece-se: o osculum da paz e da comunhão, o basium da saudação e da traição, e o suavium da conversão.

Em sua primeira carta, Pedro exorta: “Saudai-vos uns aos outros com o ósculo de amor. A paz esteja com todos vós que estais em Cristo” (1Pd 5,14). Paulo utiliza-se da mesma expressão em 2 Coríntios 13,12: “ Saudai-vos uns aos outros com o ósculo santo”. O osculum representa a presença amiga, a relação afetuosa de unidade, comunhão e bem querer entre aqueles que estão irmanados nos mais nobres sentimentos, desdobrados em gestos de partilha, fraternidade e união. O osculum, ainda, é símbolo de retorno, vida nova e perdão, como na parabóla do filho pródigo, em que o pai beija o filho após o retorno de sua viagem de distanciamento do amor (Lc 15, 11-32)). O osculum é sempre a externalização do mais verdadeiro e completo afeto que brota do coração em direção ao outro.

O basium é o beijo entre conhecidos, não necessariamente exprime o sentimento de afeto, pertença e fidelidade. É o beijo da acolhida. Em Lucas 7, 28, é narrado: “... quando cheguei a sua casa você não me deu o beijo, mas esta mulher não parou de me beijar os pés”. O basium na cultura semítica expressava o gesto de cumprimento sem comprometimento. O beijo de Judas em Jesus foi um beijo de sinal, um beijo de indicação, apontava para aquele que deveria ser preso.

Por sua vez, o suavium, caracterizava-se como o beijo do ardor, carregado de desejos como o de posse e paixão. Beijo típico dos convertidos, como no relato da pecadora arrependida que cobria os pés de Jesus com beijos (Lc. 7,28).

O costume do beijo fazia parte da cultura de Jesus e de seus seguidores. É provável que este fosse um gesto comum entre seus familiares, amigos e discípulos e, mais tarde, o gesto passou a ser incentivado por Paulo nas comunidades primitivas. O beijo encontrou diversos sentidos em diferentes culturas: bênção, enamoramento, agradecimento, compromisso, reconhecimento. No latim seu significado etimológico quer dizer “toque de lábios”, e na cultura ocidental é considerado um gesto de afeição entre amigos e apaixonados.

O beijo, gesto de amizade, reconciliação, amor

O beijo, porém, carregado de tão belos sentidos e afetos e também, de profundo conteúdo teológico, tornou-se vítima das amarras da permissividade e da banalidade das relações erotizantes que exploram os sentimentos afetivos e o corpo. Quando o reservado é desnudado, a complexidade do mistério é esvaziada. O sentido do beijo perde-se à medida que se perde a sua eleição e privacidade. O beijo que outrora se destinava aos vencedores, aos fraternos, abençoados, eleitos e amados, tornou-se, midiaticamente reduzido ao símbolo do prazer.

Homens não choram, não têm medo e não beijam! Filhos não beijam pais, pais não beijam filhos, amigos não se beijam. O beijo tornou-se quase que exclusivamente a “ante-sala” do prazer carnal. Não que não o deva, mas seu sentido e significado é muito mais extenso.

Beijar faz bem! Bem para quem beija e bem para quem recebe o beijo. Beijar faz bem para quem está com saudade, com vontade de pedir desculpas, para quem quer agradecer, desejar a paz e a felicidade do outro. Beijar é selar um sentimento de gratidão, de pertença, de continuidade. É um modo de pedir atenção, carinho e confirmar fidelidade. Beijar é tornar a pessoa especial, seleta, importante, singular. Um beijo suaviza, marca, sela, cala. O beijo humaniza, estremece, confirma.

Recuperar o sentido do beijo é resgatar as relações afetuosas, puras e singelas. É fazer sentir a “paz conosco”, a suavidade da inocência, o perdão das faltas e o compromisso da fidelidade. Beijar é gritar na voz do silêncio uma única palavra que ecoa na carne: amor.

Vilmar Maccari Dal-Bó

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