sábado, 15 de setembro de 2012

A era das pequenas celebridades: as Macabéas de nossos tempos

Foto: Holofotes do sucesso


A história brasileira é tecida de homens e mulheres de memoráveis valores. De Dom Pedro I a Tiradentes, de Tiradentes a Anita Garibaldi, de Anita Garibaldi a Getúlio Vargas, de Vargas a Dom Hélder Câmera, de Dom Hélder a Irmã Dulce da Bahia; Betinho, as incansáveis promotoras da justiça social, Irmã Dorothy e Zilda Arns, entre tantas outras personalidades de reconhecidos serviços prestadas à sociedade e que permanecem no anonimato da história.

Temos também Hebe Camargo, Roberto Carlos, Padre Marcelo Rossi, Luan Santana e Xuxa. Já tivemos a Tiazinha, a Feiticeira, a mulher Melancia, o Bozo e a Vovó Mafalda que andam um tanto quanto desaparecidos. Temos Silvio Santos, o Gugu Liberato e Raul Gil. Sem esquecermo-nos dos milionários vencedores da nave mãe Big-Brother. Quanta alegria eles nos dão! Quanto talento! Quanta capacidade de reflexão! Quanto legado...

Ainda temos as grandes celebridades reconhecidas internacionalmente e que fazem sucesso por aqui: Harry Potter, Robert Pattison e Justin Bieber: o mago, o vampiro, o teen.

Mas, o que me chama atenção mesmo são as celebridades “intermunicipais” ou aquelas “interbairros”. As mesmas de que conhecemos o nome e o sobrenome, com quem nos esbarramos todos os dias quando andamos ao trabalho, no trânsito, na fila do caixa do supermercado. Aquelas que gostam de chamar a atenção dos conhecidos, dos vizinhos, dos amigos e dos colegas de trabalho. Passeiam com o carro 0Km do ano, financiado com prestações a perder de vista, usam roupas de marca que quase sempre nos deixam na dúvida: “É original ou é réplica?”.  Pessoas que aparentam ser, não sendo. Vivem no “faz de conta” da vida, no mundo da fantasia, na Disneyland de seus sonhos e de forma inconscientemente atualizam na concretude de suas relações sociais a pobre Macabéa de Clarisse Lispector.

Evitando, se possível, emitir a construção de um juízo moral, todos nós em algum momento da vida, mais cedo ou mais tarde, somos convidados a experimentarmos os holofotes do sucesso; os louros da vitória, sejam no mundo acadêmico, no mundo do trabalho, do esporte ou das artes. Dentro de nós há uma pequena Macabéa a espera para brilhar como uma estrela. Penso que, a minha, brilha nestas linhas que escrevo...

O valor da dignidade da pessoa, sua singularidade é a maior expressão da vida humana. Acreditamos que cada pessoa é um acontecimento único. Repleta de potencialidades, habilidades, dons e talentos. E é por isso que a pessoa deve acontecer! Na arte, no esporte, na política, no mundo do trabalho. E mais, que seu acontecimento seja uma possibilidade de transformação para as pessoas que as circundam, e para o mundo. Não ocultem a sua luz; deixem que ela brilhe diante de todos. Que as vossas boas obras brilhem também para serem vistas por todos (Mt 15, 14-16). Que sua luz, seu brilho, seu talento ajude a melhorar o mundo e nos melhore. Quanto bem nos faz o talento daqueles que promovem o bem!

Como é digno reconhecer as autoridades constituídas! Come é belo cumprimentar o Governador, o Bispo, o Chefe, sem esquecer-se de acenar ao porteiro da recepção, à mulher do cafezinho e ao dedicado sacristão.  Come é belo reconhecer os embaixadores da fidelidade, do esforço, do trabalho digno e honesto, da paz, da ciência e da cultura. Os embaixadores que organizam a comunidade, o serviço voluntário, as associações de bairros, os movimentos sociais. Aqueles que são constituídos em dignidade.

As pequenas e as grandes celebridades, aquelas que estão longe e aquelas que habitam ao lado são sempre bem vindas. Não podemos cair nas amarras do preconceito, do distanciamento ou na síndrome da inferioridade. Não nos furtemos em reconhecê-las. Em aplaudi-las e reverenciá-las nos momentos justos. Podemos ir até a elas e lhes reservar os primeiros bancos. Isso não é pecado!

 Não nos impeçam, porém, de refletir e questionar o valor de seus legados. São eles que definirão a intensidade de nossos aplausos ou o grito mais amargo de nosso silêncio. Sempre haverá uma “esquina” reservada para o encontro entre o anônimo e o célebre. Macabéa teve a sua: ela brilhou! Tornou-se uma estrela.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Dai a César o que é de César: não se esqueça de cobrar de César

 
Foto: César Imperador Romano


O evangelista Mateus, em seu Evangelho, narra a passagem em que Jesus é provado pelos fariseus a respeito dos tributos cobrados pelo Império Romano. Impostos que oprimiam a classe média e os menos favorecidos. Posto à prova sobre a carga tributária de seu tempo, disse Jesus: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.  Jesus, mestre dos sábios, filho de carpinteiro, cidadão justo e com nome “limpo na praça”, não se furtava em reconhecer a autoridade de César naquilo que era dever e, ao mesmo tempo, não se furtava em revelar a soberania e a realeza de Deus que é infinitamente maior do que o poder de César.

Esta passagem deixa claro que não estava nos planos de Jesus “explodir” com César, deflagrar uma CPI no Senado Romano, depô-lo do poder, e, subitamente, levá-lo para o exílio ou, quem sabe, condená-lo a morte de cruz, mas sim, convertê-lo, evangelizá-lo, torná-lo bom, um novo homem, um novo gestor público. Como quem diz: Não viemos tirar nada de César, ou ainda, confabular contra César, mas, formar César. Mostrar-lhe que tudo o que lhe é dado é dado por Deus, e para o bem dos filhos de Deus, para que se cumpram os desígnios divinos: “Um novo céu e uma nova terra.” A mensagem de Jesus aos fariseus é muito rica. Ele ensina-lhes que César merece receber aquilo que é justo, pois é na Justiça que se estabelece o Reino de Deus.

O Reino de Deus é um reino de ordem. È um reino em construção. Um reino que abriga toda a obra da criação e aguarda pela sua recapitulação definitiva. Quando falamos sobre o Reino de Ordem, estamos falando de uma sociedade organizada, que promove a dignidade da vida e sustenta harmoniosamente toda a obra da criação. É lícito pagar os impostos para César, pois César garantirá, no exercício de seu ofício, a dignidade da vida humana: saúde pública com qualidade, inclusão social para pobres, negros, estrangeiros, órfãos e viúvas. O tributo a César garantirá o tratamento de efluentes, incentivará a produção de novas tecnologias limpas, planejará o desenvolvimento sustentável, fará cumprir um plano diretor que respeite os limites urbanos e de preservação ambiental. É justo dar a César o que é de César, pois assim, César terá fundos para assistir aos acometidos por catástrofes naturais, remunerará com dignidade os profissionais da educação, da saúde e da segurança pública. É com os impostos dos contribuintes que César garantirá a mobilidade urbana, os parques para o lazer, os eventos culturais.  É preciso dar a César o que é de César, para que César faça a sua parte naquilo que é designo de Deus para todo homem: vida em abundância.

A Deus é dado o desígnio de todas as vidas. Em Deus a realidade de todo homem. Em Jesus, Deus feito homem, todo homem se encontra, se santifica, se redime. Nele confiamos e nos salvamos. Isso é dado a Deus! A salvação vem de Deus e não de César. A salvação é obra de Deus que conta com a colaboração do homem, ou seja, com sua abertura humilde, pura e singela de coração. É Deus que salva e não César!

A parte de César é garantir a administração da criação. É permitido por Deus que César o faça; e o faça segundo seu querer benevolente: com justiça e misericórdia.

Que César promova a paz!  Não a guerra! A destruição e a corrupção.

Dai a César o que é de César, para que César faça cumprir na terra a promoção humana: o salário digno, a moradia, a geração de renda.

Dai a César o que é de César, mas não nos esqueçamos de cobrar de César o que é de sua responsabilidade, pois bem sabemos das suas fraquezas.  Sua tendência a acomodar-se com o poder, ser servil aos sistemas que oprimem a classe trabalhadora, nomear pessoas fracas e omissas, como Pilatos, para ocupar cargos públicos e distanciar-se da realidade do povo.

Sejamos fiéis a Deus e justos com César. A César nem o ônus nem o bônus, e sim, a vigilância cidadã.

sábado, 21 de julho de 2012

Um gol a favor do Domingo


Foto: Intimidade

Um já falecido Monsenhor costumava nos dizer que rezar é pensar em Deus com carinho. É deixar com que a nossa mente e toda a nossa atenção se voltem para ele. Na oração, recordar-se do itinerário experimentado ao longo do dia: nossos pensamentos, nossas atitudes; nossa forma de falar, de agir e de ser. É o momento oportuno para o exercício da humildade, perdoar a quem nos ofendeu, e pedir perdão a quem ofendemos. Insistia que a oração não consiste em palavras decoradas e repetidas sem a elevação do espírito. Rezar é entrar na amizade, na intimidade de Deus. Bastariam ao menos, para esse colóquio, sempre quando possível, dois minutos diários com a Palavra de Deus. É a Sagrada Escritura, afirmava, a vitamina, “o Biotônico Fontoura” do cristão forte.

Este velho monsenhor acreditava no poder da Palavra de Deus, não cansava de repetir-nos: “A Palavra de Deus é como uma espada de dois gumes, que penetra no mais íntimo de nosso ser e vai modificando toda a nossa existência, nossa forma de pensar e de agir e de ser”. A oração lapida o homem. Torna-o pessoa mais equilibrada, mais calma, mais justa, mais humana e feliz. Um verdadeiro cristão, finalizava.

Nos tempos modernos nos falta tempo para rezar. Falta tempo para o cristão, para o judeu, para o muçulmano. O dia é muito corrido, muitas são as atividades, há aqueles que defendam que o cansaço do dia a dia, após uma jornada intensa de atividades, por si, se faz oração. O Domingo, o dia do Senhor, dia reservado para o descanso, a meditação e a oração, tornou-se o dia do Shopping, das compras, dos clássicos de futebol. Para muitos, os Shoppings e os Estádios são as novas Catedrais. Segundo Dom Orlando Brandes, Arcebispo de Londrina, vivemos em uma época em que os “Deuses” da moda e da bola ocupam os altares principais de nossos Domingos. Padre Vilmar Adelino Vicente, professor de Moral Social, costuma afirmar em suas aulas que são muitos os quem defendem os comércios abertos aos Domingos, mas, são poucos os que se preocupam com as portas das Igrejas fechadas aos Domingos. Vivemos em um tempo onde cada vez mais os Domingos se parecem com os sábados e os sábados com os Domingos, se não fosse, claro, a segunda –feira, que o Domingo nos insiste em recordar.

A dessacralização do Domingo também toca a responsabilidade de nossos líderes religiosos. Quais são os trabalhos oferecidos na vida eclesial aos Domingos? Como anda a qualidade das homilias dominicais? Os horários das celebrações são adequados à dinâmica da vida local? Porém, ainda que estes sejam argumentos lógicos para dificultar a vivência do Domingo, não são fortes o suficiente para fazer-nos esquecer que o Domingo é o Dia do Senhor. É o dia de visitar a casa daquele que nos visita durante toda a semana. De devolver-lhe um pouco de tudo o que a sua infinita bondade nos concedeu: a vida, a alegria, o nosso sorriso, a nossa voz, o nosso canto, enfim, a nossa vivência litúrgica.

A conciliação do tempo é sempre a via da maturidade e do equilíbrio. Quanta alegria está em sair com os amigos, assistir a uma partida de futebol, caminhar nas montanhas, na beira de uma bela praia, nadar, correr. Quanto bem nos faz dar uma prova de maturidade e responsabilidade ao dizer: “Chegou a minha hora, preciso ir. Ele me espera! Preciso visitar aquele que não se cansa de me visitar”. E ao chegarmos a sua casa estabelecemos uma intensa conversa de velhos amigos, relembrando-se de coisas da vida, dificuldades, alegrias, desafios. Pede-se perdão pelas faltas cometidas, glorificam-se as maravilhas da criação, participa-se do banquete. Nós falamos, Ele nos escuta. Às vezes, não falamos nada e, no silêncio, escutamos tudo. Pode ser que ambos permaneçamos em silêncio, mas, mesmo assim sentimos a presença um do outro.  E isso nos basta!

Quanto à nossa vivência dos Domingos junto dele, descobrimos que Ele não é ciumento, controlador, possessivo, basta conciliar. O que não podemos é correr o risco de botá-lo no banco de reservas. No Domingo, ele é o titular! Mas o gol, somos nós que fazemos.
Bom passeio! Bom clássico! Mas estejamos atentos ao horário da celebração! Ele nos espera.

domingo, 8 de julho de 2012

A vida da gente

















Quando criança nossos pais são as pessoas mais inteligentes do mundo.
Quando Jovem nossos pais são as pessoas mais ultrapassadas do mundo.
Quando adulto nossos pais são as nossas maiores riquezas.
Quando idoso nossos pais são as nossas melhores lembranças e nossas mais fortes saudades.

Quando criança nossos irmãos são vistos como generais.
Quando jovem nossos irmãos são vistos como amigos.
Quando adulto nossos irmãos são vistos como força e sustento.
Quando idoso nossos irmãos são vistos como a melhor herança que herdamos.

Quando criança a escola é vista como castigo.
Quando Jovem a escola é um encontro social.
Quando adulto a escola é entendida como oportunidade.
Quando idoso a escola é pensada como aprendizado.

Quando criança o sexo oposto é o grande rival.
Quando jovem o sexo oposto é o fruto do  desejo.
Quando adulto o sexo oposto é a possibilidade de união.
Quando idoso o sexo oposto é visto como companheiro.

Quando criança o trabalho é coisa de gente grande.
Quando jovem o trabalho é uma questão de vestibular.
Quando adulto o trabalho é questão de sustento.
Quando idoso o trabalho é realização.

Quando criança o casamento é visto como coisa do papai e da mamãe.
Quando Jovem o casamento é coisa do futuro.
Quando adulto o casamento é um encontro definitivo.
Quando idoso o casamento é a celebração de uma aliança eterna.

Quando criança a fé é rezar para o papai do céu.
Quando Jovem a fé é ir à igreja aos finais de semana.
Quando adulto a fé é pedir a Deus força para enfrentar os obstáculos da vida.
Quando idoso a fé é agradece a Deus o dom da vida.

Quando criança a velhice é o vovô e a vovó.
Quando Jovem a velhice nunca chegará.
Quando adulto a velhice é aquela que insiste em bater.
Quando idoso a velhice é o presente.

Quando criança a morte é ir para o céu.
Quando Jovem a morte é algo que está longe.
Quando adulto a morte é uma realidade que dá medo.
Quando idoso a morte é uma visita inesperada.

Infância, pai, mãe, sexo, escola, trabalho, casamento, família, fé, velhice, morte. É a vida! A vida da gente. E não é novela. É realidade! E esses capítulos somos nós que escrevemos.

domingo, 17 de junho de 2012

A curiosidade do gato, árvore de Zaqueu e a coluna da Praça de São Pedro


                                                                   



Foto: Jovens palestinos oferecem 'kefyieh' ao Papa


Roma, a Cidade eterna, berço de cultura, de imponente arquitetura, do Direito e da Fé é, também, o símbolo da unidade e da comunhão dos cristãos católicos. É na Praça de São Pedro, Estado do Vaticano, que se esbarram turistas de diversas partes do mundo: peregrinos, devotos, turistas, agnósticos. Misturam-se muçulmanos, budistas, crentes e não crentes. A Praça de São Pedro é ponto de encontro de diversas etnias e culturas no coração da “velha Itália”. Quando paramos para observar as pessoas que a visitam conseguimos prontamente distingui-las e subitamente perceber os possíveis motivos que as trouxeram até ali.

Os sucessivos flashes fotográficos, um olhar de descaso, uma Ave-Maria e um Pai nosso, vão identificando e revelando suas reais motivações. Quando entre elas se escuta um grito como: “lá vem o Papa”, é impressionante! Subitamente as pessoas se movimentam, espremem, buscam identificar por onde o Papa passará e procuram o melhor ângulo para clicá-lo. Os olhos fixos num ponto, os crentes tentam se aproximar, os menos crentes procuram dar espaços aos mais crentes, e os não crentes guardam com atenção o movimento na Praça em direção ao Papa. Quando os portões interiores do Vaticano são abertos, e o Papa aparece escoltado pela Guarda Suíça, a multidão grita: “o Papa, o Papa, é o Papa”. São vozes em italiano, em francês, alemão, português, árabe, inglês. Gritam os filipinos, os latinos, os orientais. Bento XVI passa, acena, faz o sinal da cruz e prossegue. É impressionante como neste momento a unidade visível toma conta da Praça.

É verdade que estes olhares não simbolizam a fé. Não são necessariamente olhares de fé.  Não significa fidelidade e unidade com o Romano Pontífice. São olhares de curiosos, de críticos, de turistas. Mas, não se pode negar a intensidade dos olhares. É evidente que a curiosidade favorece a atenção, e a atenção, por sua vez, faz com que os olhos fiquem atentos, os ouvidos abertos e as pontas dos pés esticadas para melhor visualizar o fato. Naquele momento o movimento da curiosidade favorece a unidade entre turistas, crentes e não crentes.

Recordo que na primeira vez em que fui à Praça de São Pedro e aguardava com ansiedade a chegada do Papa, o que mais me chamou atenção foi uma senhora muçulmana, com véu, que se equilibrava sobre uma coluna para melhor fotografá-lo. Pensei comigo: “Quanta curiosidade e pouca fé”. Mas logo me veio à mente: “Que mal tem a curiosidade?” “Não foi pela curiosidade que Zaqueu subiu na árvore para ver Jesus passar?” “Por que essa mulher não poderia, em nome da mesma curiosidade, apoiar-se em um pilar para ver o Papa passar?” Diria uma pessoa mais crítica e de melhor bom senso: mas, o Papa não é Jesus. Claro que não! Não é, e nunca será! O que há de comum entre Zaqueu e esta mulher mulçumana não é a figura do Papa, mas sim, a curiosidade.

E, o que Deus é capaz de fazer a partir da curiosidade, somente Ele sabe. Com Zaqueu, fez abrir a porta de sua casa, preparar-lhe um jantar e devolver tudo aquilo que tinha extorquido dos mais pobres. O que a curiosidade poderia fazer com essa mulher? Bom, não sei! Talvez torná-la uma muçulmana melhor, mais fiel a seu credo, feliz, flexível, ecumênica. Talvez ele lhe pedisse uma estadia em sua casa, um lugar em sua mesquita, um jantar; uma kibada, uma kafta, uma esfiha. Não sabemos!

            Estar na Praça de São Pedro é ver a fé acontecer. É experimentar o sentido de unidade. É sentir as coisas da vida: a vaidade, a intriga, o poder, o limite humano.  Mas é também ver um sinal de unidade, de comunhão, de respeito e de fraternidade. Lá o humano e o divino se encontram. A instituição e o carisma. O pecado e a graça. A humanidade e a divindade. A fé e a curiosidade.  Alguns entram com a fé, outros com a curiosidade, e Deus, por si, tira proveito de ambos. Dizem as Escrituras que as prostitutas nos precederão no Reino dos Céus e, por que não, com elas, os curiosos? O ditado popular diz que “a curiosidade matou o gato”, pois sempre cai na armadilha.  Mas, no caso de Zaqueu – e de tantos curiosos, prefiro afirmar: Matou nada! Ela o converteu.

terça-feira, 29 de maio de 2012

As letras que falam de Deus















Há duas semanas fui surpreendido com um e-mail recebido de um pastor evangélico que se diz leitor assíduo de meu blog – Gotas de Espiritualidade. Neste mesmo e-mail ,ao longo de uma bela reflexão e com muita profundidade, escreve-me o pastor: “Tome cuidado com suas linhas, o mundo não precisa de mais um literato, o mundo precisa do testemunho de homens de Deus”.  Quando li este “conselho” fiquei um tanto quanto desconcertado.  A minha primeira impressão foi que este senhor estava de alguma forma tentando fazer proselitismo comigo, mas, no decorrer de suas ponderações, percebi que ele aprofundava com muita propriedade algumas temáticas que insisto em abordar, e o fazia com muita sabedoria.  Logo tomei consciência de que estava diante de um leitor que conhecia com maestria meus textos e, o mais importante, captava a intensidade de meus sentimentos. É impressionante como a fé ajuda a ler a partitura da alma.  E isso não depende de Igreja!
Esta frase escrita pelo pastor ficou entranhada em meu pensamento: “Tome cuidado com suas linhas, o mundo não precisa de mais um literato, o mundo precisa do testemunho de homens de Deus”. Movido por esta provocação que se tornou para mim uma inquietação, resolvi ler meus últimos artigos, revisados e publicados, e sentir o que eles significavam para mim, hoje. Uma experiência fantástica! Voltar nas letras, nas linhas, nos sentimentos. Na origem daquilo que creio e acredito e me faz escrever, ou melhor, viver. Esta aventura de voltar à minha redação, mergulhar na minha primeira inspiração, que talvez não seja minha, fez deparar-me com uma possível e sutil evolução poético-literária, algo que é bom e desafiante, porém, um tanto quanto perigosa. Perigo que poderá estar me distanciando daquilo que é primordial no que me proponho: a simplicidade de testemunhar as coisas de Deus. A chamada de atenção deste pastor seria um alerta ao risco de eu estar derivando para uma reflexão de prateleira ao estilo “auto-ajuda” ao invés de um testemunho concreto de vida.
É verdade! Quanto tempo dispensado na busca da palavra certa, da melhor concordância, do melhor termo, a conexão das idéias, a coesão do texto, a necessidade de segurar o leitor. Talvez a simplicidade tenha dado lugar à técnica, e a técnica esvaziado os sentimentos do autor. Senti verdadeiramente o risco de estar distanciando-me da experiência de Deus. De estar me perdendo na minha própria letra. Não basta escrever as coisas de Deus! É preciso escrever os testemunhos que refletem com a vida as coisas de Deus.
Ao falar de Deus não podemos abordá-lo e esgotá-lo como um estilo literário qualquer. Percebi que podemos correr o risco de falar de Deus idolatrando nossas potencialidades: capacidade de articular o pensamento, redação, síntese, porém, a experiência de Deus não é um gênero literário. Nela emerge conceitos, filosofias e teologias, mas, principalmente, a concretude da vida. Sem a vida, a sabedoria é reduzida ao conhecimento, e bem sabemos que todo conhecimento é limitado. Deus, não! Deus é o Deus da vida! Da concretude, da experiência, do testemunho.
Quanta diferença faz ler um texto aos olhos da técnica e aos olhos da fé. Esse pastor fez com os olhos da fé. Com seus olhos de fé conseguiu captar onde termina a alma do autor e onde começa a técnica. Este é um risco constante de quem se propõe pensar, refletir e viver as coisas de Deus. Risco de perder-se entre o embate da vaidade e da simplicidade. Precisamos de literatos, mas, sobretudo, de homens que testemunhem com a vida as coisas simples de Deus. Muito obrigado, pastor! Sua fé confirma a minha!  E juntos, ainda que em bancos e em paredes diferentes, testemunhamos aquilo que é maior: a alegria de viver em Cristo! Quem sabe, um dia, quando conseguirmos com a simplicidade vencermos nossos esquemas técnicos derrubaremos estas paredes que nos separam e sentaremos lado a lado no mesmo banco.  Como espero!

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Maio com amor: Maria, Princesa Isabel e Dona Ilca




Há quem diga que maio é o mês mais feminino do ano. Também pudera: o calendário civil reserva para maio agradáveis festividades femininas como o dia das mães, o mês das noivas, a abolição da escravatura, assinada por uma mulher. A Igreja Católica, por sua vez, dedica o mês de maio a Maria, o mês mariano. Maio é verdadeiramente o mês mais rosa do ano, se é que podemos associar a cor rosa à feminilidade sem cairmos no dualismo: menino azul e menina rosa.

Até hoje, tudo o que li e escutei sobre a figura materna pouco me chamou a atenção. Nada de muito criativo. Geralmente aproximam a figura de mãe à imagem de Maria e a comparam com um “anjo”,como a flor mais bela do jardim de Deus”, “aquela que atualiza Maria no cotidiano da vida”. Nada contra a figura de Maria, e nada contra a semelhança materna que liga toda mãe à maternidade divina de Maria. Mas, verdade é que quando se propõe refletir a singularidade de ser mãe, nada de muito novo e criativo, a meu ver, emerge. Por isso, com todo respeito aos Mariólogos – teólogos que se propõem estudar a figura de Maria no Mistério da Revelação e da Encarnação de Deus – a melhor forma para falar de mãe é ir à concretude de uma mãe e, de preferência, à nossa própria mãe. Lá encontraremos não a mulher perfeita, angélica e virginal, mas o conceito mais próximo e concreto que conhecemos do ser mãe.

Quem nunca parou para recordar sua mãe? Os tempos de outrora, tempos da infância, tempos nos quais seus cabelos não eram grisalhos, sua pele não revelava as marcas e a expressão do tempo e do cansaço. Ao recordar sua mãe, quem não lembra os momentos em família, as alegrias vividas, uma história jocosa, tristezas compartilhadas, dúvidas e dificuldades? Quando recordamos nossas mães recordamos nossa vida, recordamos o filho que fomos, quando acertamos e quando erramos. Recordamos quando fomos intransigentes, inconseqüentes e irresponsáveis.

É impressionante a capacidade que toda mãe tem de fazer recordar a vida. Na medida em que começamos a refletir a figura de nossa mãe, acabamos no quintal de nossa própria vida: nossa personalidade, nossas escolhas, aquilo que fizemos ou deixamos de fazer ao longo do tempo.

Em nossa mãe, a nossa vida

Mãe é sempre uma recordação. Ora positiva, ora negativa. Quando a recordamos tomamos consciência do que somos e somos convidados a uma avaliação existencial: como filho, homem, ser humano. Acredito que toda mãe é um lugar teológico para seu filho pois, pela mãe, o filho se encarna, ganha vida, vem ao mundo, é instruído e acontece. Quando o filho recorda sua mãe recorda sua humanidade. De onde veio, qual é o seu berço, a sua história, o seu DNA. Quantos e quantos filhos negam sua história de vida, suas raízes e verdades, fruto bem provável de um desencontro na relação materna.

Em toda mãe o filho vê o tamanho de suas verdades e a dimensão de suas limitações. Na mãe, o filho pondera, mais cedo ou mais tarde, o que fez e como lidou com aquele velho e sábio “conselho de mãe”. Diante de sua mãe o filho responde no silêncio de sua consciência se o colocou na lata de lixo ou na prática da vida. Quando recorda a memória de sua mãe o filho nunca “faz de conta”. O juízo moral aflora e a ultima pergunta que insiste a ser respondida é: Fui ou não um bom filho para minha mãe? E esta pergunta insistirá em ser respondida independente dos valores ou da intensidade afetiva que a mãe em sua vida dispensou para com o seu filho. Por mais que o filho não queira, é impossível não recordar.

Quando os mariólogos falam que a função de Maria é apontar para Jesus, percebemos esta verdade teológica no concreto da vida. Quando falamos de nossa mãe chegamos a nós mesmos: quem somos? onde estamos? o que nos tornamos? O “mocinho” que nossa mãe sonhava, ou o “vilão” que temia?

Toda mãe tem essa capacidade de fazer o filho recordar-se. Mãe tem esse dom, mesmo que distante, longe, em outra dimensão. Capacidade de nos fazer recordar a vida, pelas lembranças, saudade, ausência, distância, ou por um simples telefonema no cair da tarde. Mãe é coisa de Deus! Nela nos encontramos. Nela sentimos a ação de Deus na nossa vida.

E para não dizer que não falei das noivas e da Princesa Isabel, desejo a todas as noivas que um dia sejam excelentes mães e mando lembranças a Dona Teresa Cristina de Bourbon, mãe da Princesa Isabel, a mãe da liberdade, pelo menos histórica, do negro, sem esquecer, claro, de Dona Ilca Dal-Bó, minha mãe. Porque essa é a minha melhor teologia. A noiva mais comprometida com a minha felicidade, a princesa da minha liberdade.

.

sábado, 5 de maio de 2012

Por trinta moedas de prata


   Quando Jesus revelou na última ceia o desígnio de traição: “Um dentre vós me trairá” (Jo 13, 21), fez de forma tão pedagógica a ponto de não delatar e pronunciar o nome de Judas, pois bem sabia que, se revelasse publicamente o nome do traidor, a ceia poderia terminar em um “linchamento” público. Certamente se, naquela hora, Jesus tivesse revelado o desígnio de traição implantado pelo diabo no coração e na mente de Judas pronunciando o seu nome, seus amigos discípulos não o perdoariam e partiriam para a agressão física; a Ceia do amor tornar-se-ia a ceia do “acerto de contas”. Todos tinham fixos na mente que Jesus seria o novo Rei de Israel e, desta forma, tudo fariam para impedir aquele que ousasse contrariar os planos de poder. Os evangelhos narram, inclusive, que andavam armados. Disse Jesus: “Pedro, guarda a tua espada” (Jo 18,11). Jesus quando revelou a traição teve a sutileza de fazê-lo com um gesto: o gesto de dar o pão ao que haveria de traí-lo: “Ao que eu der o pedaço de pão molhado” (Jo13,26).
A narração deixa claro que Jesus não falou diretamente aos Doze que Judas seria o discípulo símbolo da traição e da corrupção humanas. Não revelou publicamente seu nome, para dar-lhe, quem sabe, uma possibilidade de evitar um mal maior. Porém, a decisão de Judas foi respeitada: “Faz o que deves fazer” (Jo 13,27). Como quem diz: Judas, a tua liberdade será preservada; não sou o Deus da manipulação, da opressão; sou o Deus da liberdade, que respeita as decisões humanas. Faz o que deves fazer! E na liberdade, Judas escolheu livremente entregar Jesus ao governo romano e ao poder religioso de Jerusalém pela quantia de trinta moedas de prata.  O respeito de Jesus perante a decisão de Judas é uma prova da sacralidade da consciência e da liberdade do homem perante Deus. Deus respeita a liberdade humana, suas escolhas ao ponto de não interferir mesmo quando ela coloca seu Filho diante da morte.
A liberdade nos permite acertar e errar. Na liberdade, Pedro disse: “Senhor, tu sabes que eu te amo”.  Na liberdade Judas vendeu Jesus por trinta moedas. A liberdade, por si só, pode ser um caminho de encontro e desencontro. Somente o bom uso da liberdade humana pode assegurar a dignidade e o equilíbrio da vida que é repleta de possibilidades e convites. Diz Paulo: “Tudo posso, mas nem tudo me convém”, ensinando-nos que nem todas as possibilidades levam ao bem.
O bom uso da liberdade já foi tema de discursos eloqüentes de filósofos, teólogos, moralistas, crentes e ateus.  Diferentes pontos de vista, diversas opiniões, mas uma coisa em comum: a contribuição fundamental da Ética, da Moral e do Direito para o bom exercício da liberdade. Contribuição que ilumina o agir humano naquilo que é certo ou errado, lícito ou ilícito, bem ou mal. Ainda que se altere a gramática ou a forma conceitual das palavras para expressar o exercício da liberdade e sua finalidade, uma coisa é certa: os valores morais e éticos são o sustento daqueles que se propõem viver segundo um ideal maior.
Aos cristãos, homens identificados com Jesus de Nazaré, cabe sintonizar os passos com os passos de Jesus, ou seja, com a ética cristã. Ética norteada pela fé, palavras e gestos de Jesus. É o agir cristão no mundo. Com base no agir ético e moral é que os cristãos se fazem reconhecer. A ética cristã não está baseada nos limites paroquiais, mas sim, nas atitudes e nas decisões que os cristãos tomam nos embates da vida. Dentro e fora da igreja. É na vida que o agir ético e moral é provado. É no dia a dia que revelamos nossa opção fundamental, onde estão fundados nossos passos, nossas escolhas e decisões. Um bom cristão faz isso tudo a partir do testemunho da fé em Jesus.
Há quem diga que ser cristão dentro da sacristia é fácil, o difícil é ser cristão no mundo,  onde cada vez mais impera a filosofia “quem pode mais chora menos”, dos valores segundo os ditames e mesuras da beleza e da estética, do consumismo desenfreado, da corrupção pública e da sexualidade banalizada. Assumir um ethos cristão como projeto de vida não é nada fácil. Nunca foi! Não é à toa que tantos homens e mulheres ao longo da história foram martirizados por causa da fé. Seguir um ethos cristão hoje é assumir o martírio social; o bullying de ser taxado de “carola”, “cabeça fraca”, “alienado”, “démodé”, “quadrado”, “ultrapassado”, “doente”, “fora da casinha”, “viajão”, “santinho de pau oco”, “bonzinho para outros verem”, entre tantos outros.
Dizia Monsenhor Francisco de Salles Bianchini: “Tirem um líder religioso de uma comunidade e serão necessários dois policiais a mais para vigiar e garantir a paz da comunidade”. Quando tiramos os princípios que norteiam o agir humano de nossa cartilha de vida, a vida sucumbe. Sucumbe nas relações familiares, afetivas, sociais, profissionais. Sem princípios valorativos a família se torna um grupo de convivência sem sustento, as relações afetivas relações de puro prazer desmedido, e as relações sociais um jogo de oportunismo e vantagens.
Voltando à última Ceia, vemos que a figura de Judas é um pouco a figura do mundo frágil dos que se deixam seduzir por trinta moedas de prata. Dos que vacilam em seus princípios diante de um champanhe importado, de uma badalada festa, de uma roupa de marca, de um conchavo lucrativo, de uma oportunidade profissional, de uma noite de sexo fácil. A liberdade pode hoje ser corrompida por trinta moedas de prata, como no passado.
Perante a esta realidade situa-se a importância de nortearmos nossa liberdade com bons valores. Não somos juízes de condenação de ninguém. Todos nós dependemos da misericórdia e da benevolência de Deus: Pedro, João, Tiago, Judas, eu e você. Todos contamos com sua infinita misericórdia.
Assumir um ethos cristão, um comportamento evangélico não é ficar apontando com o dedo ríspido aos que não assumiram este projeto existencial como propósito de vida. Pelo contrário, é dar testemunho e fazer-se um com aqueles que não crêem por falta de testemunho.
Somos barro, somos homens, somos trinta moedas de prata. Somos filhos, somos criaturas, somos bons. Somos um acontecimento único! Somos dignidade! Somos aquilo que trinta moedas de prata não compram. Somos filhos de Deus!
Vilmar Dal Bó Maccari

quinta-feira, 5 de abril de 2012

As duas bacias da Semana Santa

Foto: O que é a verdade?

Os textos que narram a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo são repletos de uma rica plasticidade literária que fazem do leitor, seja ele homem de fé ou não, entrar com vivacidade no acontecimento Pascal e aproximar-se da memória do pobre Judeu condenado à morte. Os textos retratam a dor da condenação de um homem simples e justo; a incompreensão de seus contemporâneos e seguidores. Exprimem a dor de uma mãe que vê o filho amado entregue à morte. O abandono e a frustração daqueles que o seguiam. A força do Império, a contradição do poder religioso e, por fim, a incoerência e a miséria humana: “Disse Pedro: Senhor, por ti darei a própria vida, eu nunca te negarei”(Jo 13,37); “Eu não conheço este homem, disse Pedro, e o galo cantou” (Jo 18,27); “Judas, com um beijo trais o Filho do Homem?”(Lc 22,48); “Não acho nele crime algum, disse Pilatos”(Jo 18,38); - E Pilatos lavou as mãos – “ Que o sangue dele caia sobre nós e sobre nossos filhos” (Mt 27, 25); “Se eu não tocar em suas chagas não acreditarei” (Jo 20, 25); “ Meu Senhor e meu Deus” (Jo 20 28). Esses textos expressam a força do poder político e o limite da fraqueza humana.

Envolto nesse conflito de poder e fraqueza emerge um singelo objeto, que passaria quase que despercebido se não estivesse presente em duas cenas fundamentais que retratam este embate histórico entre o poder e o serviço, a Lei e a oblação. Falo das duas bacias mais importantes da humanidade: a bacia de lava-pés, presente na última Ceia, quando, em um gesto de serviço e humildade, Jesus se pôs a lavar os pés de seus discípulos, e a bacia da condenação de Jesus, na qual Pilatos lavou suas mãos diante da condenação de um inocente.

A primeira bacia, a bacia de lava-pés, é a bacia do serviço. Bacia daquele que se despoja de sua condição de superior e se põe a servir. É a bacia da doação, da humildade, da simplicidade, da comunhão. Bacia que inverte a lógica do poder hierárquico e faz do primeiro o último e, do último, o primeiro. Na cena de lava-pés, Jesus, o mestre, quebra todos os protocolos pré-estabelecidos, dá uma lição de humanidade a seus discípulos, esvazia-se de sua condição de Mestre e Senhor; ajoelha-se diante de seus seguidores derrubando as barreiras da soberba edificadas pela lógica do poder. A bacia de lava-pés é a bacia da paciência e da incompreensão, pois esta vai na contramão do mundo: desnuda as relações de poderio e anestesia o narcisismo social e estético das relações superficiais.

A segunda bacia é a bacia de Pilatos, ou seja, a bacia dos lava-as-mãos. Bacia dos descompromissados, dos omissos e dos anônimos perante a causa da verdade e da justiça. É quase sempre a bacia em que os fracos e os desencorajados procuram para lavar suas mãos e se esconderem da realidade. É a bacia do “faz-de-conta”, do “esconde-esconde”, do fechar os olhos à realidade, do “deixa tudo como está para ver como é que vai ficar”. Bacia do: “eu não sabia”, da turma do “deixa disso” ou ainda do “eu fui o último a saber”. A bacia de Pilatos é a bacia que não cria compromissos, inserção e disponibilidade. Bacia quase sempre do jogo da conveniência, do oportunismo e das negociatas duvidosas.

Duas bacias e duas realidades: a bacia do serviço e a bacia da omissão. Aquele que se inclina no exercício do poder e serve; e aquele que se esquiva no exercício do poder e cala. Como percebemos em ambas as cenas o problema não está nas bacias, porém, nas mãos, nos sentimentos e nas atitudes dos que aportam. Pois bem, o problema não está no poder em si, na função, mas sim, na forma do exercício do poder.

As lições das bacias são oportunas para avaliarmos quais bacias estamos manuseando em nosso dia a dia. Bacias de covardia e omissão como as de Pilatos, ou bacias da disponibilidade e da coragem, como a de Jesus? Como exercitamos o poder quando nos é outorgado? Em quais bacias molhamos as nossas mãos?

Existe um ditado que diz: “queres conhecer os valores de um homem, dá-lhe um tacape”. Eu experimento avançar: “queres conhecer um líder, dá-lhe uma bacia.” Ela atualizará o servo que somos ou o “cacique” que construímos. Bacias são apenas bacias, o diferencial está nas mãos que as portam. É Deus com todos e cada um com a bacia que elegeu.

terça-feira, 20 de março de 2012

A força do murmúrios

Foto: Entre vós


Murmuravam, pois, dele os judeus e diziam: Não é este Jesus, o filho de José? Acaso, não lhe conhecemos o pai e a mãe? Como, pois, agora diz: Desci do céu? Respondeu-lhes Jesus: Não murmureis entre vós ( Jo, 6, 41-43).

Intrigas, fofocas e murmúrios não são fruto do mundo moderno e secularizado. A murmuração e o jogo da intriga já estão presentes nos tempos de Jesus e são narrados nos Evangelhos. O próprio Jesus assistiu, em sua humanidade, à fraqueza da humanidade: falar mal do outro. O texto de João (6,41) narra que os judeus murmuravam contra Jesus. Viam em Jesus um homem simples; filho de gente simples. O Filho de um “José qualquer”, e de uma dessas e tantas e outras “Maria” que busca ser um “notável” e ascender em seu clã. Com pode um “Zé povo”, um “sem berço”, nascido no meio de animais, criado por gente simples do campo, educado aos fundos de uma carpintaria ousar falar de Lei, Ética, Moral, Justiça, Reino e Céu? Questionavam seus contemporâneos a ousadia de Jesus em abordar temas até então reservados aos sacerdotes, magistrados e políticos de seu tempo. Ao filho do carpinteiro caberia ser o filho do carpinteiro! Era a lógica vigente.

As murmurações contidas neste texto dão margens a amplas interpretações. Aparecem visivelmente as do preconceito, da inveja, do bairrismo e do elitismo arcaico. Nada de novo ou estranho para nós, hoje.

Jesus, diante dos murmuradores, é enfático: “Não murmureis entre vós (Jo 6, 43). Ele reprova a prática dos murmúrios porque sabe que estes emergem repletos de preconceitos, maldades e sentimentos pouco nobres. Jesus foi vítima de murmuradores assim como muitos, hoje. Os murmúrios nunca são justificáveis. Ainda que seu conteúdo contenha certa dose de veracidade, a prática do murmúrio é reprovada, pois ceifa a autenticidade e a coragem de estabelecer-se um diálogo de comunhão e correção fraterna. O murmurador nunca edifica o murmurado. Faz aumentar a indignação, distorcer as informações e promover as calúnias. Nos murmúrios escondem-se os fracos, os medíocres e os inseguros que não são capazes de sustentar seus pensamentos e posições.

É difícil não murmurar! Atire a primeira pedra quem nunca murmurou de um professor, chefe, político, colega de trabalho, amigo ou de um líder religioso. Somos provocados a murmurar. Murmuramos quando somos confrontados, quando perdemos posições, quando somos questionados, incompreendidos, avaliados, esquecidos. Murmuramos quando o “outro” entra na nossa “contramão”, quando brilha mais do que nós, quando se destaca naquilo que temos dificuldades de realizar bem. Murmuramos, murmuramos e murmuramos.

Diante dos murmuradores, Jesus deixa claro que esta é uma prática não aceitável. Não aprova e relembra: “Vossos pais comeram o maná no deserto e morreram” (Jo 6, 49). Como quem diz: Vossos pais morrem pela “língua”, mas entre vós, não deve ser assim, pois lhes foi dado um Novo Alimento, muito mais substancial do que o maná do deserto de vossos pais. Falava assim para que compreendessem seus ensinamentos e sua prática de justiça, verdade, comunhão e unidade, completamente inversa à calunia, fofoca, divisão e intriga, razão de ser do murmúrio.

Não murmurar é uma arte. Exige disciplina, força de vontade, abertura de coração e retidão de sentimentos. É preciso ser muito Homem para não murmurar. Forte, decidido, convicto e corajoso. Murmúrio não tem sexo! Tange a todos: homens e mulheres. Há quem diga que murmúrios de homens são muito mais doentes, dissimulados e venenosos do que os de mulheres. Mas, isso tudo é especulação. O que vale mesmo é o ensinamento de Jesus: “não murmureis entre vós”.

Ao final deste texto é bem possível que o leitor pare, reflita e se depare murmurando a respeito do que foi escrito, mas eu insisto, “não murmureis entre vós”. Ensina o Evangelho, agradece o autor.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Quem és tu?

Figura: Tua face

Essa é a primeira pergunta que faz um iniciado na fé: Quem é Jesus? Uma pergunta simples, direta e objetiva que, a princípio, sugere uma resposta também objetiva. Uns buscam em Jesus uma figura doce, passiva, conciliadora, um Jesus “paz e amor”; outros, um Jesus guerreiro, militante, libertador, “o Jesus das massas”. Há ainda aqueles que buscam em Jesus a figura de um homem público exemplar: um bom orador, um filósofo, um intelectual, “um Jesus das urnas”. A literatura faz de Jesus um psicólogo, o maior que já existiu, um líder vitorioso em gerência organizacional e vendas. Um executivo bem sucedido, o mestre na arte de motivar pessoas. Um Jesus à moda “Lair Ribeiro”, “Daniel Godri”. Em suma, fazem de Jesus, da pessoa de Jesus, a resposta ideal que se adequa à necessidade de quem pergunta: Quem é Jesus?

O desafio, porém, de responder quem é Jesus não é recente. Seus discípulos, apóstolos e simpatizantes tinham a mesma dificuldade: conhecer Jesus. O texto do evangelista Mateus narra esta dificuldade que intriga o próprio Jesus. Disse Jesus: “Quem diz o povo ser o filho do homem? E eles responderam: Uns dizem João Batista; outros: Elias; e outros: algum dos profetas” (Mt 16, 13-14). Como se respondessem: um psicólogo, um político, um curandeiro, um filósofo, um comunista. Essa controvérsia a respeito da pessoa de Jesus, já presente em seu tempo, exprime a verdade de que Jesus era uma pessoa fascinante e um tanto quanto difícil de ser descrita. É um homem comum, mas fala com autoridade de profeta. É um Judeu, mas vive segundo a Lei do amor. É contradição para seus contemporâneos, mas aponta um caminho de unidade que o denomina como verdade e vida. Natanael, um de seus discípulos, não temeu em reconhecer Jesus: “Mestre, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel!”(Jo 1, 49).

Assim como ontem, Jesus, hoje, continua sendo uma resposta difícil de compreender. Enquanto alguns teólogos assumem essa árdua tarefa de aproximar-se cada vez mais do Jesus histórico, místicos e mestres em espiritualidades sugerem que, ao invés de compreendermos as teorias que apontam para Jesus, devemos experimentá-lo, ou seja, buscar uma vida de intimidade e oblação com o ressuscitado.

Meu professor de Cristologia, ao abordar a figura de Jesus de Nazaré, sempre foi enfático ao afirmar que só podemos aproximar-nos do acontecimento Jesus à medida que caminhamos ao seu encontro com passos históricos e passos de fé. Isso significa dizer, a medida que aceitamos o fato real de sua existência, dando-lhe um nome, uma geografia, um tempo, uma família, um ofício e recordando as mediações salvíficas acontecidas na história que o fizeram ser reconhecido como o Rei, o Senhor, o Messias, o Cristo, o Ungido, o Filho de Deus Vivo. São estes passos, na história e na fé, em perfeita sintonia, sem extremismos, reducionismos e exageros, que nos permitem conhecer e experimentar Jesus de Nazaré.

Minhas conclusões acadêmicas estabelecem que, quando o divino entra na história através do Mistério da Encarnação, junto com ele nós damos um passo na história para contemplarmos o divino. Escreve o Evangelista Mateus: “Tendo Jesus nascido em Belém da Judéia, em dias do rei Herodes, eis que vieram uns magos do Oriente a Jerusalém” (Mt 2, 1). E continua: “Entrando na casa viram o menino com Maria, sua mãe e, prostrando-se, o adoraram” (Mt 2, 11). Junto com os reis magos nós damos um passo na história, vamos a Belém para conhecer Jesus, e assim, o adorá-lo. O primeiro passo, o passo histórico, é aquele que firma o chão, o tempo e o espaço para que possamos ajoelhar-nos e dizer: viemos adorá-lo. Não é possível chegar ao menino sem ir a Belém. Não é possível contemplar Jesus Cristo sem entrar na história nos dias do rei Herodes.

Estas reflexões são pertinentes para refletirmos os passos que damos na história e na fé ao falarmos de Jesus de Nazaré, o Cristo. É possível que ainda estejamos longe de responder de forma una quem é Jesus de Nazaré, mas, por certo, estamos cada vez mais próximos de afirmar quem não é Jesus de Nazaré: o mágico, o ilusionista, o curandeiro, o pop star.

Depois de ruminar tudo o que recebi a respeito de Jesus de Nazaré nos bancos acadêmicos e nas experiências religiosas, concluo que em Jesus encontramos a plenitude de todas as realidades. No calvário, se escondia toda a sua divindade, e hoje, em sua presença sacramental, se esconde toda a sua humanidade. Creio em ambas (cf. Adoro te devote, de Santo Tomás). No seu penhor de sacrifício real e humano datado na história e no tempo, bem como em sua atualização sacramental na comunidade quando esta se reúne, se faz memória, e celebra-se o sacrifício. É realmente um movimento pendular de fé e história.

Falar de Jesus Cristo realmente não é fácil, mas é vital e fascinante. É um desafio que se perpetuará nos séculos. É um mistério que não se esgota, uma paixão abrasadora que não se apaga, um amor que não finda. É o desejo de atualizá-lo diariamente perguntando a si mesmo: Quem és tu em minha vida?