quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Eu estou aqui!

Foto: Falta de leitos


As linhas que constituem este texto narram uma experiência real e humanizadora que experimentei nesses dias. Uma simbiose de sofrimento e alegria, dor e satisfação, morte e ressurreição. Sem querer poetizar a objetividade do fato, para não cair em um sentimentalismo barato e desconexo da realidade, tentarei aproximar-me ao mais próximo possível do fato acontecido. Assim poderei refletir a partir da experiência concreta.

Indo para uma celebração religiosa, dois carros colidiram de forma grave, fazendo com que dois passageiros fossem encaminhados para o hospital em estado de média complexidade. No hospital, após longo tempo de espera, os dois acidentados foram atendidos e clinicados. Um deles, após ter feito exames de rotina e nada de grave constatado foi liberado, enquanto que o outro, por ter quebrado o dedo menor da mão esquerda e por estar com fortes dores nas articulações e, principalmente, na região cervical, ficou em estado de observação. A orientação médica prescreveu que o paciente ficaria internado 24 horas para que a evolução das dores e o restabelecimento do paciente fossem monitorados. Neste contexto, por ter uma relação de amizade com o jovem acidentado e pelas surpresas que a vida nos prepara, acabei recebendo a responsabilidade de ser o acompanhante do paciente e com ele pernoitar no hospital.

Ao chegar, logo que entrei no hospital o encontrei deitado sobre uma maca no corredor, imobilizado e abatido. Imediatamente fui até a enfermeira responsável, e perguntei-lhe por que ainda não o havia levado para um quarto. Respondeu logo que não havia leitos suficientes: bastaria que eu olhasse ao meu redor que encontraria outros pacientes na mesma situação. Ressaltou ainda que tivemos a sorte de encontrar maca disponível, caso contrário, o paciente estaria numa cadeira de rodas. Quando voltei o olhar, vi diversos outros doentes abarrotados nos corredores disputando espaços e no aguardo de leitos: senti uma tristeza profunda, por mim, por meu amigo e por todos os que ali estavam. Por mim, porque me senti incapaz e sem nada poder fazer. Por meu amigo, porque achava que ele necessitava e merecia “algo melhor” e, pelos demais pacientes, por vê-los marcados pela dor, pelo sofrimento e pelo cansaço. Pensei comigo: “isso aqui é uma instituição que cura o corpo e fere a dignidade”. De forma muito educada, a enfermeira colocou uma cadeira de plástico ao lado da maca no corredor, onde eu pudesse passar a noite. Com olhar expressivo, era como se dissesse: “desculpa-me, nada posso fazer”. E nada podia mesmo! Salvo o trabalho dedicado e atencioso que nos prestou durante todo o processo.

Durante o tempo que estive com meu amigo, ajudava-o a se locomover, ir ao banheiro, mudar de posição, tomar as refeições, controlar a medicação e articulava a relação paciente/enfermagem.

Por volta das 22h00 deu entrada no hospital um jovem de 31 anos. Tinha sofrido um acidente de moto, batido a cabeça e estava com fortes dores no corpo. O jovem foi medicado, também colocado sobre uma maca, posta ao lado de onde estávamos eu e meu amigo. Éramos vizinhos em um corredor que abrigava tantos outros.

Tão próximos estávamos que era impossível não perceber a inquietude do jovem. Mexia-se de um lado para o outro. Enrolava as mangueiras por onde pingava o soro e a medicação. Estava completamente inquieto, mexia no celular, fazia ligações, mandava mensagens e não sossegava. Logo percebi que estava sem acompanhante e deduzi que estava comunicando o acontecido a seus familiares. Com o passar das horas, foi-se criando um clima de aproximação e partilha, algo típico de hospitais e filas de espera. Foi neste momento que relatou como acontecera o seu acidente. Como o tempo custa a passar no hospital, nossa conversa se prolongou, falou-me que participava na adolescência de grupos de jovens, era crismado, casado na Igreja e temente a Deus. No segundo momento da conversa, relatou-me que estava distanciado da Igreja, separado da esposa, mas ainda temente a Deus. Com o avançar das horas, já por volta das 02h00 da madrugada, percebi que ele permanecia inquieto. Então tomei a liberdade e perguntei por que o acompanhante dele ainda não tinha chegado. Imediatamente respondeu-me de forma áspera: “quem está doente sou eu, não meu acompanhante”. Ao perceber que não gostou de meu questionamento, silenciei a conversa, levantei da cadeira e fui ver o soro de meu amigo. Após o desconcerto de nossa conversa, muito triste, o jovem me chama e desabafa. Desabafava dizendo que além de ser separado de sua esposa, morava sozinho em uma kitinete, sua mãe e irmão eram falecidos, seu pai morava no interior e as pessoas de seus relacionamentos não teriam essa generosidade de passar uma noite com ele, sentados em uma cadeira de plástico. Com os olhos cheios de lágrimas, dizia que não tinha ninguém. Não havia a quem recorrer. Não tinha quem o acompanhasse.

Foi neste momento que entendi tamanha inquietação e movimentação que se alastrava noite adentro. Novamente meu coração se compadeceu e cheio de tristeza, da mesma forma como quando entrei no hospital e vi os pacientes enfileirados pelos corredores. Sentado entre as duas macas, olhei para ele e disse: “Descanse tranqüilo, durma, eu estou aqui, vou vigiar a sua medicação e ajudar nas refeições. Agora descanse e durma”.

Passado algum tempo, o jovem foi se tranqüilizando, relaxando, até que dormiu. E assumi aquilo que prometi: estar ali. Cuidei do soro, acompanhei cada dosagem, ajudei-o na medicação e fiz tudo o que foi possível. Confesso que não foi fácil dizer para um desconhecido: “eu estou aqui”. Tive que buscar forças para vencer a vergonha e falar algo que não queria fazer. Acho que foi o “eu estou aqui” mais difícil e mais santo da minha vida. Mudei a noite de agonia de uma pessoa que sofria sobre uma maca num corredor de hospital. E não sofria com as dores do acidente, causa de sua internação. Sofria, pois, não tinha alguém ao lado para compartilhar a sua dor. Era uma dor interior, silenciosa. Dor que os medicamentos não alcançavam.

“Eu estou aqui” disse-lhe. E ele confiou! Quando amanheceu, meu amigo, a quem acompanhava oficialmente, ganhou alta, fomos embora e aquele jovem continuou por lá. Ao despedir-nos disse-lhe: “coragem”. Ele respondeu: Muito obrigado!

No carro, voltando para casa, pensei comigo nas forças de minhas palavras; “eu estou aqui”, e o que elas significaram para aquele jovem desconhecido.

Assim são as coisas de Deus. Ele faz uso de nossas fraquezas, de nossa humanidade, para comunicar sua bondade. Acredito que Deus agiu em nós. Em mim, no meu amigo e naquele jovem desconhecido. Deus age sempre quando conseguimos humildemente dizer: “eu estou aqui”. Ele conta com nosso “eu estou aqui”.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Quando a alegria bater à sua porta

Foto: Alegria bate

Padre Fábio de Melo é autor de uma obra muito interessante, intitulada: Quando o sofrimento bater à sua porta. Com muita sensibilidade e profundidade, suas características, aborda a temática do sofrimento de forma madura e propositiva. O sofrimento, afirma Melo, é destino inevitável de todo homem, porque é fruto do processo que nos torna humanos. O grande desafio de sofrer, ressalta, está em saber identificar os sofrimentos que valem a pena ser sofridos e como potenciá-los em momentos de crescimento e amadurecimento. A partir deste ponto, é necessário fazer perceber que o sofrimento não é necessariamente um estado definitivo, mas uma oportunidade que nos leva ao amadurecimento e ao desenvolvimento das forças mais nobres e encorajadoras que habitam a pessoa que sofre. O sofrimento é, antes de tudo, um lugar oportuno para provarmos nossos mais íntimos valores e deixarmos que eles aflorem em um límpido processo de humanização e purificação, salienta.

Recebido de forma tão serena esta compreensão a respeito do sofrimento, aventuro-me a dar um passo na contramão do sofrimento e mergulhar na experiência da alegria. Essa aventura, por ora, pode parecer antagônica ao sofrimento, porém, não ouso desvinculá-los, pois acredito que o sofrimento e a alegria caminham juntos, são como letras e melodias que constituem o mesmo verso, sendo que cada um cumpre seu papel para garantir a beleza poética do poema.

Diante do sofrimento, afloram as mais fortes experiências do limite humano. Sofremos porque somos limitados, fracos, restritos, dependentes. Diante dos sofrimentos, estamos sujeitos ao que há de mais humano: cólera, irritação, medo, revolta, indignação, desespero, dor, angústia. É no sofrimento, também, que nos deparemos com a exigência da reagir, não esmorecer. Agora, afastando-se momentaneamente do sofrimento, pergunto: Quando a alegria bate à nossa porta, o que em nós aflora? Barulho, algazarra, gritaria, extravasamento? Sorriso, comunicação, benevolência, gesto de amor?

A que está vinculada a alegria? Há uma força interior que nos faz sorrir, praticar gestos de amor e tornar o ambiente em que habitamos mais agradável e prazeroso a quem nos circunda ou há uma ação externa que eleva ao máximo nosso entusiasmo para uma euforia momentânea. Do que depende a alegria? Tirar dez na prova? Ganhar um aumento salarial? Comprar o carro do ano? Degustar a comida preferida? São as alegrias eternas e duradouras a que almejamos ou são momentos eufóricos de conquistas pessoais voláteis?

É claro que tirar dez na prova é motivo de alegria. Comprar um carro novo, comer a comida preferida são, sem sombras de dúvida, motivos para alegrar-se. Mas ao homem cabe ir além, não ficar na superficialidade, questionar-se: as conquistas humanas que nos fazem felizes respondem à ética da realização humana? O dez na prova, o aumento de salário, o carro novo, aquele prato delicioso, me fazem mais homem, mais justo, mais humano? Qual a ética e o sentido da minha alegria e do que me alegro? Alegro-me com a superficialidade, com o periférico ou com aquilo que há de mais valioso na existência humana?

Há quem experimente a alegria como o usufruto do que alcançou na vida. Há aqueles que experimentam a alegria de forma mais profunda, ou seja, na busca de dar sentido às coisas alcançadas; ter profundidade, cultivar soluções e esperanças. Sob esta ótica se estabelece a diferença entre a alegria como pura realização mundana e a alegria que dá sentido a vida. O dilema da alegria, por certo, não está em tirar dez na prova, no carro do ano, ou na função que ocupamos, mas sim, no sentido e na intensidade que o indivíduo dá e como lida com aquilo que é passageiro e o alegra. A felicidade e a alegria o libertam, ou pelo contrário, lhe fazem mais prisioneiro da arrogância, da prepotência e da auto-suficiência?

Quanto bem faz a alegria! Quanto bem faz um palhaço, um comediante, um humorista que, com sua graça, coloca o sorriso e a alegria nos lábios e nos corações das pessoas. A alegria que se doa ao outro, ninguém pode retirar. Mas, a alegria que aprisiona e individualiza é capaz de corroer, aniquilar, alienar.

A alegria é, de fato, a melhor companhia para enfrentar o sofrimento. O sofrimento e a alegria não são antônimos, se esbarram com freqüência na vida daqueles onde aportam. Os portadores da alegria e do sofrimento definem o tamanho e a intensidade deste aporte.

Pela fé, semeamos entre lágrimas para colher com alegria. A identidade do cristão não é nem o sofrimento e nem a fuga das ocasiões de alegria, mas sim, é plasmada na alegria de Deus. E esta alegria é a nossa força! Mesmo que não venha o dez na prova, o carro do ano, o aumento de salário, ou que o cardápio não tenha aquilo que mais apreciamos, pouco importa, pois com tamanha dignidade e verdadeira alegria, sabemos acolher a nota que nos é justa conforme nosso desempenho e dedicação, temos noção de que nosso carro nos leva onde queremos mesmo não sendo o carro do ano, que nossa competência está acima de qualquer remuneração e que, para quem tem fome, arroz e feijão são banquete.

Assim é a lógica da alegria cristã, alegria que contorna os percalços da vida, não aliena, não oprime, não escraviza: faz o homem mais homem no desenrolar da vida.


quarta-feira, 26 de outubro de 2011

E agora, “Negão”?

Foto: Monsenhor Francisco de Salles Bianchini



E agora, “Negão”?

E agora, “Negão”?
A vida terrena acabou,
as palestras foram completadas,
o curso não atrasou,
o folclore não desafinou,
o quinto dia chegou,
e agora “Negão”,
e agora jovem?

Está sem sono,
Já não pode dormir,
deixou de fumar,
o licor não pode beber,
jogar dominó já não pode,
não há pedras no jogo,
não há jovens na mesa,
e agora “Negão”?

E agora, “Negão”?
sua firme palavra,
seu timbre de voz,
sua forte postura,
seu zelo apostólico,
sua batalha com as vestimentas, - e agora?

Com o evangelho na mão,
com lágrimas nos olhos,
com firme narração,
Quer fazê-los conhecê-lo,
apresentar O ideal.
“Negão”, e agora?

Se você reclamasse,
se você nos apreçasse,
se você cantasse,
se você chorasse,
se você não morresse,
mas você morreu,
Você morreu, “Negão”!

Entrou para eternidade,
bebe aquele vinho delicioso,
degusta o omelete,
reconheceu a voz do sonho de criança,
Vem comigo Chico!
Vem comigo!
Ele te chama!










domingo, 16 de outubro de 2011

A humildade que se alcança


Foto: Fina Estampa

A minha vida nunca foi marcada pela fome e pela miséria. Não conheci a despensa de minha casa vazia e nem tive a pobreza como companhia, pelo contrário, prato cheio e roupas boas até mesmo nos momentos mais difíceis de crise sempre me acompanharam. Porém, isso não significa dizer que não passei diversas vezes por restrições e carências, amarguras e abatimentos, revoltos e sofrimentos. Trilhei por diversas vezes o caminho da desolação e da pobreza mesmo que ainda de “barriga cheia”.

Nestes últimos dias tenho refletido profundamente o valor da restrição. Tudo aquilo que nos restringe e nos faz ser menos ou quem sabe mais do que somos. As restrições a primeiro momento podem parecer-nos um processo de castração, aniquilamento, tudo aquilo que restringe a possibilidade humana. O homem restringido é um homem não realizado. Mas, por sua vez, a restrição é sempre uma prova de superação para o próprio homem. Como lidar, acontecer, realizar diante das restrições impostas pela vida? Como sorver a vida a partir das restrições? Qual homem não está sujeito as restrições como: força, fadiga, sofrimento, doença, morte. As restrições fazem parte do limite humano e o próprio homem se torna limite na sua condição humana. O humano por si é um acontecimento restrito.

Lidar com a restrição, com o limite, com a sobra é uma tarefa arda, porém, necessária. É essa aridez a possibilidade mais fecunda de uma experiência humanizadora e humanizante. Humanizar-se é sempre um processo penoso e necessário.

Certa vez estava me preparando para uma consulta médica, escolhi a melhor roupa do guarda-roupa: calça, camisa, meia, sapatos. Depois de devidamente arrumado e perfumado fui ao espelho verificar se tudo estava de acordo, ali então, transpareceu uma realidade que até então não tinha percebido. A calça que vestia a camisa, a meia e os sapatos que calçava eram doações que recebi de primos meus. Naquele mesmo instante abri o guarda-roupa e tomei consciência que muitas das minhas roupas que ali estavam eram doações de familiares. Roupas que se tornaram restritas para outras pessoas; pequenas, fora de moda, surradas, ou até mesmo desnecessárias pelo excesso, fato da restrição de outros que se convertia a meu favor e supria a minha carência. Este, por mais banal que seja, é um sutil exemplo que as restrições dos outros quando encarada de forma sóbera e não provocativa podem nos fazer bem.

Nesta experiência por mais simples que possa ser ela ganha um valor pedagógico imenso quando observada aos olhos da humildade. Utilizar uma roupa herdada de outro, ainda que não a necessite, é um exercício de humildade, esvaziamento, acolhimento. Tanto para quem doa quanto para quem recebe. Expõe a realidade que somos finitos, passageiros, restritos. Por contra partida, pessoas que sentem dificuldades e vergonha em utilizar uma peça de roupa doada e encaram isso como um ato de humilhação ou decadência, é bem possível que estas mesmas pessoas vivam segundo a ordem de uma “barriga cheia” e um coração vazio. Esvaziar a barriga, sentir fome e viver de vida sobrea em alguns momentos da vida é muito pedagógico. Faz-nos pensar que os trajes de festas são passageiros, assim como o homem, e que em algum momento a aventura da vida deixará de ser possível. O que usamos pouco importará, mas sim, o sentido que damos a aquilo que usamos. Agradeço as roupas ganhadas, surradas, selecionadas que recebo de meus primos. São estas roupas e estas pessoas que me oportunizam a exercitar diariamente a humildade cada vez que me olho no espelho. Recordo que sou restrito e carrego comigo um pouco da restrição do outro. É de fato a humildade que me alcança e eu que me deixo alcançar.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

A figura do pai e a cartilha de José

Foto: Pegadas

A psicologia moderna não se cansa em destacar a importância da figura paterna na formação da identidade e do psiquismo do indivíduo. A presença do pai, ou daquele que assume esse papel, contribui de forma decisiva na construção da personalidade e na relação do indivíduo com o mundo. O pai é a referência para a criança, em especial, para o menino. É no pai que ele busca a segurança, a objetividade, o discernimento e a virilidade que no futuro sustentarão seu comportamento. É o pai o primeiro herói, ou quem sabe, o último bandido de toda criança. Não nos aventuraremos em mergulharmos de forma mais profunda na formação da psique do sujeito e na contribuição da paternidade a este processo de formação do indivíduo para não corrermos o risco de avançarmos em uma área do conhecimento humano e seus respectivos conceitos, dos quais não temos o devido domínio, porém, avançaremos naquilo que é pertinente a todo homem: a relação e o encontro pai e filho.

Na Sagrada Escritura a palavra pai não é desconhecida. Por diversas vezes nos deparamos com o termo Abbá, que, em hebraico quer dizer “paizinho”. O próprio Jesus quando rezava, dirigia-se a Deus chamando-o de Pai. Pai, neste sentido, é uma expressão de primazia, intimidade, confiança, cumplicidade, entrega. Disse Jesus: “Pai, em vossas mãos eu entrego o meu espírito”.

A leitura teológica da figura do Pai não é diferente da experiência concreta do pai na vida do filho. O menino tem o pai por primeiro. Ele é o primaz! É a figura masculina mais próxima, por isso, o primeiro homem, o mais forte diante dele. É o pai, também, o mais inteligente, o mais rápido e o mais seguro. No pai, o menino busca intimidade. Deseja tornar-se próximo, pois aspira ser como o pai: forte, inteligente, rápido. Nesta aventura de proximidade e intimidade, tempo de identificação, ele percebe que herdou muitas características do pai, mas, na sua singularidade ele não é como o pai. Não consegue ser tão brilhante, tão forte, tão eficaz e é, neste momento, que a intimidade os leva à confiança mútua. E o menino começa a partilhar com o pai seus medos, suas falhas, seus desejos, seus sonhos, enfim, seus conflitos e limites. É neste ponto da relação que se estabelece a cumplicidade; o filho deposita seus sentimentos nos ombros do pai, como Jesus o fez: “em vossas mãos entrego o meu espírito”. Sem dúvida, o pai é essencial na formação de seu filho. É ele o tecelão de um novo homem.

Sobre o pai adotivo de Jesus, São José, pouco fala a Sagrada Escritura, mas quando a ele se refere um termo muito significativo é expresso: “José homem Justo”. Este é o atributo dado ao pai adotivo de Jesus: homem justo. A justiça foi a cartilha da educação de Jesus. Quando inúmeras literaturas propunham temas como Pai vencedor filho vencedor, Pai rico filho rico, ou Pai pobre filho rico, entre outros, aventuro-me na experiência de Nazaré: “Pai Justo filho justo”.

É inegável a falta que faz o pai na vida de uma criança. Há quem fale em pessoas indecisas, inseguras, sem brio, medrosas, fechadas, volúveis, tristes, incapazes de concluir um projeto de vida. Quem realmente perdeu o pai na infância, ou teve pouco contado por fruto de uma formação cultural rígida, sabe até que ponto esta análise é pertinente e até que ponto é mera especulação. Mas, de fato, com maior ou menor intensidade, todos aqueles que de alguma forma foram marcados por experiências de ausência ou recusa do pai na infância, carregam consigo traços de um relacionamento fracionado.


Ao pai não cabe o julgamento moral: bom o ruim? Mas sua figura está sujeita ao risco: de herói tornar-se o vilão na história de vida de seu filho. A dor de não ter com quem identificar-se, com quem partilhar, de não ter no fundo alguém que lhe permita arriscar é tamanha como a daquele que sofre ao ver seu pai tornar-se um vilão. Seja ele herói ou vilão, uma criança não pode ser privada de experimentar seu pai. É o pai, o herói, o bandido, o fraco ou o forte de todo menino. É tudo aquilo que ele quer ser, ou tudo aquilo que ele recusa ser.

A figura do pai no campo religioso é sempre a experiência do sagrado, do acolhimento, do alívio, da partilha, da entrega. Experimentamos ser filhos para ter alguém a quem chamamos de Pai. Quando pronunciamos a palavra “Pai” buscamos compreensão, ajuda, afago, força e, sobretudo, coragem para continuarmos.

O pai, na vida do filho, é isso. É uma força que o encoraja, ajuda, afaga e o faz continuar. O filho é sempre a continuação de seu pai. Talvez um pouco menos, talvez um pouco mais. Mas esta é a identidade que os une. É a fala que os marca para sempre: “meu pai”, “meu filho”. A muitos dói não falar, a muitos dói não ouvir: “meu pai”, “meu filho”. Àqueles que podem falar e têm a graça de ouvir cabe aspirar aos bons exemplos, às mais nobres virtudes. A cartilha da Justiça de José é sempre uma boa sugestão: Pai Justo, filho justo!

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Entraves nas relações

Foto: desculpa

Entraves nas relações

Perder, perdoar e morrer. São estes os três grandes desafios com que se depara o homem moderno. Em maior ou menor intensidade, todos, um dia defrontar-se-ão com estes entraves: o constrangimento de perder; a “humilhação” de perdoar ou pedir o perdão; ou ainda, a difícil realidade de enfrentar a morte, seja por medo, indignação ou serenidade. Vejamos estes emblemáticos desafios:


· Perder com alegria! Perder nos dias atuais é sinal de fraqueza, encolhimento, restrição, limitação, inutilidade. As pessoas não gostam de perder. Não gostam de perder a razão, a competição, a posição. Gostam do pódio e não da competição. Gostam de serem reconhecidas por suas posições “firmes” e não pela capacidade de ceder. Ceder é coisa de fraco! A grande virtude para muitos está em ganhar. O homem é medido por aquilo que ganha: dinheiro, prestígio, posição. Por isso, para um ganhador compulsivo não é fácil compreender o sentido da doação, da oblação, da gratuidade, da entrega. Quem se condiciona somente a ganhar tem dificuldades em doar. Doar amor, elogios, cumplicidade, bens. Grandes ganhadores são na maioria das vezes grandes solitários. Não conseguem lidar com o limite, com a fadiga, com o humano, com o outro, com o fracasso. São escravos de suas pseudo-vitórias.

· Perdoar com generosidade! Perdoar é a grande novidade dos cristãos. Também o maior desafio diário. Perdoar o “inimiguinho”, o “inimigo” o “inimigão”. O cristianismo não é uma experiência legislativa, “dente por dente”, “olho por olho”, mas sim, uma experiência de misericórdia, “o perdão pelo perdão”. A reconciliação é a marca fundamental dos cristãos. Ela desconcerta a arrogância humana, a soberba, e o poderio, pois, pedir e doar o perdão requer sensibilidade de espírito, compaixão, benevolência e humildade. Perdoar é difícil, porém, é terapêutico. O perdão retira do homem sua equivocada presunção de fazer justiça por si mesmo e deixar que Deus a faça. E quando Deus a faz, executa com perfeição. Deus é mais misericordioso do que Justo. A justiça de Deus está na misericórdia dos homens.

· É morrendo que se vive! Morrer é o maior medo de todo homem. Medo da dor, da finitude, do adeus. Todo homem sabe que mais cedo ou mais tarde irá morrer. Mas, mesmo assim, o homem foge da morte, se esconde dela, não se prepara para enfrentá-la e quando se depara com a morte cai em prantos e desespero. A morte não é escondida de ninguém. Ninguém é poupado dela. Nascemos sabendo que vamos morrer. Porém, nos escondemos dela e não nos preparamos para a sua chegada. E por que fugimos? Porque se admitimos a morte amanhã, teremos que mudar nossa conduta de vida hoje: perdoar e pedir o perdão, se reconciliar, abdicar do orgulho e buscar o essencial, Deus. Evitamos pensar a morte para não termos que mudar de vida no agora da vida. Deixamos para pensar a morte no fim da vida para “aproveitar” a vida. Quem nos garante que a morte nos está reservada para um futuro distante? A morte é sempre um convite meditativo para uma nova forma de viver o hoje e o agora da vida.

Perder, perdoar e morrer são desafios para qualquer homem. São entraves que provocam a existência humana. Aguçam os sentimentos, fazem aflorar os relacionamentos. Perder, perdoar e morrer. Todo homem é capaz. Todo homem perde, todo homem perdoa, todo homem morre. Todo homem!

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Minha alma está triste até a morte


Foto: Figura Triste

Minha alma está triste até a morte. Estas palavras não são arranjos poéticos, refrão de música, ou título de livro. São uma expressão forte e verdadeira que saiu da boca de Jesus de Nazaré no Horto das Oliveiras durante a agonia que precedia à sua morte: “Minha alma está triste até a morte” (Mt 26,38).

Com esta expressão, Jesus revela à humanidade o pavor e a angústia vivida antes de sua morte violenta. Esse relato evangélico, mais que um convite meditativo à oração e reflexão é uma prova autêntica da humanidade de Jesus. Ele é homem. É alguém que tem sentimentos profundos e demonstra com facilidade aquilo que é autenticamente humano: alegria, bondade, amizade, tristeza e tentação. Jesus é alguém que experimenta a vida no que nela há mais humano.

Poderíamos enumerar diversas ocasiões e sentimentos que narram a vida absolutamente normal de Jesus, como a de todo homem, mas nos ateremos preferencialmente à tristeza e ao temor em Jesus, que reúne em si o temor e a tristeza de toda a humanidade.

Quando Jesus revela diante da morte que sua alma está triste e temerosa, ele não está renunciando ao cálice no qual se cumpre a vontade do Pai. Muito menos, se esquivando da cruz que lhe é confiada. Pelo contrário, Jesus está nos revelando a extensão de sua humanidade que, mesmo frágil e assustada, sujeita à dor e ao escárnio, é entregue para a realização do projeto de Deus e abrigo da humanidade.

Jesus assumiu na sua dor a dor de todos aqueles que participaram de seu sacrifício. A dor de seus familiares, dos amigos, dos discípulos, dos convertidos, e até mesmo a dor daqueles que o condenaram e o crucificaram. A tristeza de Jesus era uma tristeza profunda porque nela se reunia a tristeza da humanidade: a tristeza de ontem e a tristeza de hoje. A tristeza de toda a história.
Por mais que isso possa parecer teoria de teólogos que tentam aproximar-se do mistério cristológico, percebemos esta verdade estar mais viva no coração dos que crêem do que naqueles que se sustentam unicamente nos livros acadêmicos.

Quando sofremos, quando estamos tristes, abatidos, elevamos todo o nosso sofrimento em forma de orações e preces, e suplicamos a Deus para que se compadeça com o sofrimento que bate à nossa porta e insiste em depositar-se no mais íntimo de nossa alma.

A tristeza dos homens de ontem, as vividas hoje e as reservadas para amanhã são as mesmas e já experimentadas por Jesus naquela noite de agonia no Horto das Oliveiras. Ele assumiu por antecipação todas as nossas tristezas, das mais superficiais à mais profunda. Tristeza que o fez suar sangue. Não era a tristeza da morte em seguida na cruz, mas sim, a tristeza reservada ao mundo e experimentada em sua humanidade. Ele foi a ponte entre o ontem e o hoje.

Mas, como poderia Jesus assumir minha tristeza se não me conhecia? Como poderia carregar para si meus sofrimentos se estou há mais de dois mil e onze anos de distância dele? Diz a Escritura: Para Deus mil anos são como um dia, um dia é como mil anos! (2Pd 3, 8-9)

Se a humanidade de Jesus limitava-se ao escárnio e à zombaria dos homens e do seu tempo, sua divindade não. Para Deus não há tempo nem espaço; o ontem é o amanhã em um eterno e generoso agora! Ou seja, a dor e a tristeza experimentadas por Jesus são a minha dor e a minha tristeza assumidas em sua humanidade. Deus nos ama ao ponto de anteceder-nos assumindo para si a nossa dor. Afirmava um sábio monsenhor que conheci: “Ele antecipou nossa dor na agonia do horto para filtrá-la e deixá-la suportável e acessível conforme a humanidade de cada homem”. Como quem diz: “Ele tirou o nosso excesso e deu-nos conforme o que é possível suportar”. Aprendemos com isso que a tristeza não é maior que a misericórdia e a justiça. Isso nos leva a compreender o tamanho do amor divino. Amor condensado em coração humano.

Talvez nossa limitada capacidade de compreender o que é o amor não nos permita entender o tamanho do sacrifício de Jesus. Talvez seja esse, também, um dos motivos que o fez sentir esta profunda tristeza na alma: a possibilidade de acharmos um dia que a sua tristeza não era a nossa tristeza e o seu sacrifício não foi a causa de nossa salvação. Com ele todos nós sofremos, morremos e ressuscitamos. Foi porque estávamos com ele naquela noite de angústia e agonia que ele está conosco nas nossas noites de angústias e agonias. É nele, na sua humanidade, ontem, hoje e sempre que todo homem se encontra. Na mais profunda tristeza e na mais autêntica, singela e perfeita alegria.

Vilmar Dal-Bó Maccari



terça-feira, 16 de agosto de 2011

Esperança: prescrição para vida

Foto: Frasco

Certa vez escutei de alguém de que não me recordo quem que a vida é feita de “esperas”. Passamos vida a espera de algo ou alguém, e são estas “esperas” que alimentam a dinâmica da vida. A criança espera a adolescência, o jovem a vida adulta, os pais, o nascimento dos filhos e dos netos. Assim é a vida! Vivemos a dinâmica de aguardar o que está por vir. E aguardamos com esperança, confiança e vivacidade, pois esperamos o melhor no que há de vir.

Quase sempre depositamos nossa esperança no tempo. É o tempo esta força que nos empurra para vida e também para a morte, pois é no tempo que nascemos, crescemos e morremos. É neste ciclo, vida-morte, que a vida acontece: expiramos vida e inspiramos morte.
Na infância recebemos nossos primeiros valores que, quando assumidos na juventude e na vida adulta, nos acompanham por toda a vida. Na vida experimentamos a condição de amantes e amados, de amigos do peito e de amigo de amigos, de conhecido e de estranho. É o tempo que nos aproxima e nos distancia, nos abre algumas portas e a outras fecha. Tudo no tempo da vida! Na vida é-nos reservado um momento para sorrir e um momento para chorar.

O tempo, esta força que nos faz recordar a vida e também nos aproxima da morte é, ao mesmo tempo, a força que nos oportuniza a possibilidade da esperança dando-nos um novo sentido a cada instante de vida. Eis o quarteto da existência: vida, morte, esperança, tempo.

Este quarteto me recorda uma experiência muito significativa por mim vivida: um dia, procurei um consultório médico para realizar exames de rotinas e, ao chegar ao consultório, fui conduzido até à sala de espera para aguardar a minha vez. Com o avançar das horas percebi que minha consulta estava atrasada, comecei a ficar impaciente e irritado com a demora do atendimento ao ponto de, esbravejando, ir ao encontro da secretária reclamar do atraso. Havia na sala de espera cinco pessoas que se encontravam na mesma situação que a minha, o que me deixava mais impaciente ainda. Ao fazer minha reclamação quanto ao atraso do médico, a secretária, pronta e educadamente me disse que o médico estava preso no trânsito e ela, assim como ele, nada poderia fazer. Quanta irritação!

Pois bem, essa era a condição do momento em que vivia: o tempo, esboçado no atraso do médico; a vida, que acontecia naquela sala de espera; e eu, repleto dos sentimentos de impaciência, indignação e intolerância sem nada poder fazer. Completamente sujeito e refém do tempo. Nada podia fazer contra o atraso, senão aguardar. E assim o fiz. Aguardei! Aguardei impacientemente. Tornei-me sujeito do tempo, inútil, impaciente, irritado, impotente no aguardo do médico.

O que aprendi com isso? Aprendi que o tempo não para, ele acontece independente dos meus sentimentos mais rebeldes, das minhas vontades, ele acontece tirando proveito até mesmo de minha inutilidade. Não há como evitá-lo. Nada que eu fizesse naquele momento: gritar, falar mal, dobrar o valor pago pela consulta, nada modificaria a dinâmica do tempo na sala de espera. Só havia um lugar (a sala), o tempo expresso na vida (o atraso), meus sentimentos momentâneos (impaciência e irritação) e entre eles, a esperança, possibilidade que deixei passar despercebida. Pouco soube tirar proveito da esperança, e, de fato, era esta que poderia ter dado um novo sentido àquele momento de espera.

Junto comigo, na mesma sala, estavam as outras cincos pessoas, em iguais condições marcadas pelo tempo: o atraso. Passei junto delas duas horas de minha vida e quando cheguei em casa, percebi que não recordava o rosto destas pessoas, as roupas que vestiam e, muito menos, sabia-lhes o nome. Comecei a perceber que deixei o tempo de espera que ali vivi ser dominado por sentimentos pouco nobres e me esqueci do exercício da esperança. Perdi a oportunidade de ser atendido, ainda que com atraso, mais calmo, sereno e inteiro pelo médico, pois não soube me controlar diante do tempo. Talvez dificultando e mascarando ainda mais o diagnóstico.

Percebi, tardamente, que o mais importante não era o tempo que permaneci na sala de espera, mas as pessoas que deixei de conhecer na sala de espera. Experimentei o imediato e esqueci-me da esperança. Entre as cinco pessoas que lá estavam, casualmente, nestas surpresas que a vida reservam, esbarrei com uma delas novamente em outra situação, e por ironia do destino, eu estava precisando de sua ajuda, e ela me reconheceu prontamente como: “o moço impaciente do consultório”. Assim é a esperança quando experimentada: ela tira proveito do presente em perspectiva do futuro.

A esperança não é o imediato, não é abulia. É o aguardo sereno, tranqüilo, seguro que nos faz confiar e nos permite até mesmo ser inúteis no tempo sem perder o gosto pela vida e a dinamicidade que ela de nós exige.

Não importa quanto tempo passamos na sala de espera: o que importa é como nos comportamos na sala de espera. As pessoas que conhecemos na sala de espera.
Aprendi com aquela situação que a sala de espera, a ante-sala, era mais importante do que a consulta agendada com o médico. Saí da sala de espera mais doente do que cheguei. Faltaram-me doses de esperança, paciência e compreensão, ensinamentos que prescrição médica alguma pode curar.

Vilmar Dal-Bó Maccari

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Chama o Espírito Santo, menino!

Foto: Espírito em nós!


“No princípio, o espírito pairava sobre as águas” (cf. Gn1, 1).

No princípio, o espírito de Deus pairava sobre as águas (cf. Gn 1,1). Depois, Deus soprou seu espírito de vida nas narinas do homem (Gn 2, 7). Santificou o homem e toda a obra da criação. O Espírito de Deus está em toda a criação. Move-se nos homens, no mundo criado, nos animais, nas plantas. É presença constante, viva e amorosa de Deus em nós e conosco. Por isso, é nosso advogado, consolador, santificador. Aquele que nos é dado em nosso favor.

Quando eu era pequenino, aprendi com minha mãe a chamar o Espírito Santo nas horas mais difíceis, nas situações mais tensas, ou nas horas em que estava precisando de elucidações, como antes de uma prova difícil, às vésperas de tomar uma decisão importante, ao realizar uma atividade de risco, ou ainda, para buscar coragem frente os conflitos da vida e até mesmo para aspirar bons sentimentos em favor dos relacionamentos.

Sempre seguia fielmente o conselho dela, principalmente antes das provas de matemática, que sempre foi para mim um tormento, porém, mal sabia eu, que o Espírito Santo é tão eficaz e aperfeiçoador que mais tarde me conduziria até ao curso de engenharia. Haja força! Mas não para por aí! Não foram poucas às vezes que chamei o Espírito Santo para tomar uma decisão difícil, como permanecer neste curso ou trocar de curso? Avanço ou recuo? E após um bom tempo de evocação sempre tomava uma decisão plausível, e fazia-o seguro, pois sabia que, se errasse, erraria sobre o conhecimento do Espírito Santo. Quando tinha que pedir desculpas para alguém, concertar um erro pedia para que o Espírito Santo me desse a coragem necessária para olhar nos olhos da pessoa e pusesse as palavras certas em minha boca. Como era difícil! Como é difícil! Mas sempre, quando o invocava, por incrível que pareça, a situação fluía naturalmente e na maioria das vezes a conversa era mais curta e suave do que eu esperava. Também havia momentos em que eu clamava para o Espírito Santo pedindo que abrandasse meu coração, que tirasse a raiva, o rancor, permitindo assim que me relacionasse melhor, vencesse minha timidez, minha vergonha, minha limitação. Claro que as coisas não aconteciam de imediato, mas, tudo ia se ajustando no remar da vida, ou melhor, no soprar do Espírito.

Hoje, percebo como foi válido aprender e poder contar com o Espírito Santo. Compreender ele como o advogado, o consolador, o amigo, a presença e o consolo em diferentes etapas de minha vida. Na medida em que reconheço sua presença amiga em minha vida, reconheço a distância que se estabelece entre ele e as novas gerações. Os jovens parecem não mais conhecê-lo. Não clamam por sua ajuda antes daquela prova difícil, na hora do “aperto”, às vésperas de apresentarem um trabalho, projeto, ou fazer uma viagem e pedir sua proteção. Parece que aposentaram o advogado, contentam-se com o acaso, com o trivial e não buscam o aperfeiçoador. Aqueles antigos santinhos impressos com a imagem de uma pomba, símbolo do Espírito Santo, que muitos jovens traziam na carteira para dar-lhes proteção no dia a dia, são coisa do passado. O Espírito Santo é um ilustre desconhecido na prática da vida.

Não ecoa mais entre os jovens a esperança no Espírito Santo para a elucidação de questões temerosas e para o encorajamento diante dos obstáculos da vida. A distância do Espírito Santo aposenta até mesmo aquela velha tentação humana de deixar tudo por conta do Santo Espírito.
O misticismo, a devoção, a amizade, o companheirismo parecem estar fragilizado na relação entre o Espírito Santo e as novas gerações. É verdade que surgem movimentos eclesiais que propagam a devoção e o louvor ao Espírito Santo, mas, ainda está longe de ser o que foi no passado: o amigo e advogado.

Quando reflito sobre o Espírito Santo estendo minha compreensão na íntima relação do Mistério da Santíssima Trindade. Gosto de relembrar o conceito de Santo Agostinho: o Espírito Santo é o amor na relação entre o amante (Deus) e o amado (Jesus). É o santificador de toda a obra da criação e da redenção. Mas, de volta ao chão da vida, o que mais ecoa em minha lembrança e memória é a velha catequese que aprendi de minha mãe: “Meu filho, quando você estiver apertado, chame o Espírito Santo.” E, de fato, quando estou em situação de risco, de “aperto”, esta é a minha primeira atitude, clamar pelo Espírito Santo; algo que aprendi graças à minha mãe. Talvez seja esta a raiz da questão: os pais não apresentam mais o Espírito Santo aos filhos que, por sua vez, encontram diversos outros espíritos, menos edificantes e menos santos ao longo de suas vidas espalhadas pelo mundo.



Vilmar dal-Bó Maccari

quinta-feira, 2 de junho de 2011

O ciclo da vida: equilíbrio no amor e no adeus

Foto:vidas



Um casal apaixonado que abraça a vida matrimonial sabe muito bem que este estado de vida supõe a geração e criação de filhos. Gerar os filhos e criá-los com amor e zelo faz parte da dinâmica matrimonial. Ainda que muitos casais não possam ter filhos, a adoção é uma via de superação. Os filhos são a continuidade do amor matrimonial perpetuado na história.

Tudo é muito previsível e compreensível, nada de novo se dá, a não ser o fato de que um dia este amor prolongado na história, a família, também crescerá, amadurecerá e resolverá sair de casa: assim como seus pais, perpetuarão também eles seu amor. É o momento em que os filhos deixam suas casas para constituir uma nova família. Pai e mãe, depois de anos educando e convivendo com seus filhos, sentem-se como abandonados quando estes têm de partir. Sofrem! E sofrem com razão. É um amor que se desprende, uma extensão de seu concreto existencial que vai morar em outro endereço: outra rua, bairro, cidade, estado, país. Neste momento se dá o choque de realidade do casal: o famoso “enfim sós”. Começaram sua vida matrimonial sem filhos, eles nascem, crescem e terminam suas vidas longe deles. É a dinâmica do “adeus”! E os pais sabem muito bem o que é isso, porque um dia também deram “adeus” aos seus pais, e partiram. No fundo, é isso que não os faz impedir que seus filhos dêem “adeus”, mesmo que o sofrimento aperte o peito. Sabem que é preciso dizer adeus!

Não tenho dúvida de que este sofrimento pode ser minimizado ou reduzido quando os pais vivem o matrimônio de forma saudável. Esta saúde está na vivência conjugal entre marido e mulher. Saúde que consiste em não colocar os filhos acima da vida conjugal. Quando isso ocorre, há um grande risco de desordem familiar. A prioridade da esposa é seu esposo, a prioridade do esposo é sua esposa e, de ambos, os filhos. Quando uma parte do casal ama mais seus filhos do que seu cônjuge há um descompasso na relação familiar e a partida dos filhos, quando chegar o momento, pode tornar-se traumática.

Um casal que tem o relacionamento como prioridade na vivência familiar saberá com muita maturidade superar a partida dos filhos. Sabem que se amam e se complementam ao ponto de superar a saudade. Mas, quando o casal não tem seu relacionamento conjugal como prioridade na vivência familiar, terá dificuldade de preencher a falta que o filho fará, e isso os levará a depender das “migalhas” de recordações da infância e do passado, não vivendo o tempo presente. Sentir-se-ão abandonados, envelhecidos, inúteis, esquecidos. Castigados pelos fios de cabelos brancos e pelo tempo que passou tão depressa. Tudo porque puseram o amor aos filhos acima do amor conjugal.

Casal que se ama acima dos filhos é casal que sabe respeitar o universo dos filhos, que não tem medo de envelhecer juntos, esperar a morte juntos, mas que, acima de tudo, repetem a história de seus pais, e sabem que seus filhos a repetiram tal qual. Eis o ciclo da vida: o amor sóbrio que respeita o exercício do amor do outro, mesmo quando o outro é o próprio filho. Eis o ciclo da vida dos pais: verem os filhos partirem como eles um dia partiram da casa de seus pais e, o que é mais difícil, saber lidar com o adeus de um filho.

Vilmar Dal-Bó Maccari

domingo, 29 de maio de 2011

Procura-se uma esposa

Foto: sacerdote



É impressionante o desejo que algumas pessoas têm de arrumarem “candidatas” a esposas para os padres. Lutam, mesmo que não tenham sido convocadas para tal missão, para que os padres tenham o direito de construir uma família e ter filhos, enfim, a oportunidade de ter uma mulher para, quem sabe?, nas noites de inverno, aquecer seus pés. Lutam muitas vezes, sem perguntarem a opinião do protagonista principal desta história.

A vida celibatária para estas pessoas é entendida como restrição: não casar, não fazer sexo. Logo, acreditam que o padre é um homem restrito, limitado, isolado, desconectado do tempo e do mundo. Esquecem que a sexualidade é apenas um detalhe da questão. Castidade é muito mais! Castidade é um elemento que favorece: pureza de coração, dedicação integral, sublimação, entrega valiosa, consagração da vida, fidelidade, harmonia. Castidade não se resume a copulação, prazer, sexo desmedido. Muitas vezes percebemos com maior intensidade os sinais do amor em uma singela relação casta do que em um orgasmo funcional e rotineiro de obrigação matrimonial. Se o fim da castidade fosse a salvação do mundo, das vocações ou da Igreja, a família não estaria tão fragilizada, amargando altos índices de divórcio.

Dizem que a castidade leva à solidão. Que o padre é um homem solitário. Será que no casamento não há solidão? Será que o ato sexual consegue resolver todos os problemas emocionais? Será que o casamento consegue resolver todos os problemas do mundo? Fome, discriminação, preconceito, ganância, violência?

O celibato não restringe o amor. O amor não é propriedade de casados ou castos. O problema não está em fazer sexo “demais” ou “de menos”, o problema está em não amar. É muito pobre compreender o celibato como redução sexual, mas, é muito rico entendê-lo como uma opção livre, não imposta, para viver o amor na sua forma mais exigente. Amor de cumplicidade e entrega total.

O padre não canaliza sua sexualidade para sofrer, ele imola dentro de si um projeto pessoal: mulher, filhos, família em favor do povo. Deixa de construir uma família para abraçar o povo. Segundo as estatísticas, no Brasil há 1 padre para cada 10.000 habitantes. Esse é o tamanho da família do padre, são por esses que ele renunciou a seu projeto pessoal.

De forma concreta, o que seria daquela piedosa e idosa senhora se não tivesse o padre durante cinqüenta anos para rezar sua missa dominical, acompanhar as procissões de Santa Teresinha, benzer as fitas rosa que colocava sobre os ombros a cada missa, incentivar a catequese, as romarias, as peregrinações, os coroinhas? O que seria dos pobres que, bem antes do programa Fome Zero, “zeravam” sua fome com as cestas básicas doadas pela Igreja?

Morreu? Chama o padre para “enterrar”. Tá doente? Chama o padre para benzer. Nasceu? Agenda o batizado com o padre. Vai casar? É preciso agendar o padre e a igreja.

Na hora da alegria ou da dor ele está sempre à disposição, e não por obrigação, dever, salário, faz porque o escolheu como projeto de vida.

A castidade não diminui o padre, pelo contrário, o liberta para ouvir o idoso, acalmar a noiva, entender o jovem, acolher a criança, acompanhar o enfermo, aliviar o pobre, aconselhar a família. Ele os têm como prioridade. No passado, era motivo de muito orgulho ter um padre na família, hoje, não se vê com bons olhos. O sacerdócio não é rentável.

É claro que a vida de castidade tem seus limites, suas lutas cotidianas para manter a fidelidade, a pureza e a transparência na alma e no espírito. Assim como no casamento, dura é a luta cotidiana para manter a fidelidade, a pureza no relacionamento e o desejo vivo, com o passar do tempo.

A castidade não é uma imposição. O casamento não é uma imposição. Só casa aquele que quer. Só é padre aquele que quer. Ninguém pode casar por obrigação. Ninguém pode abraçar o celibato por obrigação. A mais profunda riqueza concedida por Deus ao homem é a liberdade. As regras para o matrimônio e para vida sacerdotal são claras. Ninguém deve ir enganado ao estado que pretende assumir.

Para aqueles que lutam e não se cansam de arrumar pretendentes para os padres, sugiro que mudem o motivo da luta, lutem para que os padres sejam mais fiéis, felizes e realizados na vocação e no estado de vida que escolheram. Não impeçam os padres de amá-los! Eles trocaram uma família por você. Não insista em dar a eles um projeto de vida que é seu. Dê oração aos padres e tudo basta. Lembre-se, você e sua família fazem parte do projeto de vida dele. O celibato do padre é muito mais em favor seu do que dele. Valorize o que é seu! Não insista em casar o padre. A não ser que ele queira!

Vilmar Dal-Bó Maccari

terça-feira, 17 de maio de 2011

Leões urbanos: o que ruge?

Foto: Eu

Leão tem casa, endereço, identidade e trabalho. E olha que não estou falando das selvas, das jaulas, dos circos ou dos parques temáticos. Refiro-me aos leões urbanos, estes que encontramos cotidianamente pelas ruas, no trabalho, nos shoppings, nas igrejas. Leões que enfrentamos diariamente, e somos convidados a domar muitos deles.


Certa vez ouvi uma história que me chamou atenção. Dizia: “Um velho sábio disse a uma criança que dentro de todo homem existem dois leões: um calmo e manso e outro, agitado e feroz. Então, o sábio perguntou à criança: - Qual destes leões é o mais forte? A criança lhe respondeu: - Certamente o mais agitado e feroz! O velho sábio então lhe disse: - Muito bem, meu pequenino, você julgou pelos olhos do mundo, onde a agitação e a ferocidade estão associadas à força e ao poder. Mas eu lhe digo: o mais forte será aquele que você alimentar com maior freqüência. Com isso, a criança compreendeu o segredo da força interior”.


Todos nós temos um leão em nosso interior. Tornamo-nos ferozes quando incomodados ou dóceis quando afagados. Somos como jaulas de abrigo.

Quando abrimos nossas jaulas e soltamos nossos leões, estamos sujeitos a machucar, a ferir e a colocar em risco os nossos relacionamentos, pois dificilmente saberemos qual dos leões sairá de dentro de nós por primeiro. O leão civilizado, protetor que ampara e encanta ou o leão que assusta, não perdoa e devora. Qual dos leões terá mais força dentro de nós?


A história do velho sábio nos diz que esta decisão é nossa. Podemos alimentar o leão da lealdade, da fidelidade, da força da coragem e do domínio das paixões, ou então, podemos dar alimento ao leão da intriga, da divisão, da mentira, do preconceito, da inveja e do laxismo: “És responsável por aquele que cativas!”, disse o Pequeno Príncipe. Diria: “És responsável pelo leão que alimentas dentro de ti”.

Não podemos fugir do leão que existe dentro de nós. O que podemos, e devemos certamente, é investigar como estamos alimentando este leão. O que lhe estamos dando de comer? Com que intensidade ele ruge dentro de nós?

A espiritualidade é sempre um bom caminho para alimentar estes leões: gestos de civilidade, educação, boas obras, contato com o Sagrado.

Em tempos de competições acerbadas, onde o profissionalismo, a técnica e o lucro imperam na sociedade, pergunta-se: São estes os melhores alimentos para o leão humano?


O leão está a rugir! Ruge com suas palavras, com seus gestos, com sua forma de pensar e agir. Externalizamos no cotidiano o leão que alimentamos. Dentro de nós está vencendo o leão que somos.

Vilmar Dal-Bó Maccari

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Seus olhos azuis e a ressurreição

Foto: Longe de mim



Esta semana visitei um velho amigo que está muito distante, faz-me muita falta. Meu coração batia no compasso da saudade. Não consegui suportar e fui visitá-lo. Ao chegar onde ele se encontra vieram à tona intempestivas recordações e lembranças de momentos significativos em minha vida.

Verdade seja dita: eu não era o melhor amigo dele. Muitas vezes, até de meu nome se esquecia, da mesma forma como ele não era meu melhor amigo, mas isso pouco nos importava, pois, quando estávamos juntos, quando conversávamos, estabelecia-se uma relação de amizade recíproca: sem cobranças, posições ou ditames.

Nossa amizade era sempre marcada por encontros pontuais, às vezes acompanhadas de um jogo de dominó, de um café, uma pizza ou uma dose de licor. O mais importante, porém, era a conversa que tínhamos: um misto de partilha, orientação, “broncas”, “puxão de orelhas” e, como toda conversa de amigos, havia sempre convergências e divergências. Um de nós sempre tinha que ceder, geralmente eu, mas isso não me incomodava e também não quer dizer que concordasse com tudo. Mas, era tão bom estar ali, que naquele momento não me importava ganhar ou perder. Quando estamos em companhia agradável, ônus e bônus são relativos. O amor facilita a perda, suporta o fracasso, admite a inutilidade. Somente o amor!

Nesta visita que lhe fiz, relembrei-me do grave tom de sua voz, seu vocabulário erudito e bem articulado que sempre encontrava lugar para uma expressão em latim, alemão ou italiano. Bem diferente dos meus outros amigos que, assim como eu, tropeçamos no português e soletramos algumas sílabas em inglês. Nossa amizade não tinha formalidades. Quando a conversa se alongava, sem cerimônias ele mesmo dizia que estava na hora de terminarmos a prosa, e eu, claro, tentava “espichar” sempre um pouco mais. Ele, porém, respondia-me: “Negão, tu tá querendo é conversa”. E estava mesmo! Queria ouvi-lo. Queria orientações. Fascinava-me com suas lições de moral, às vezes por demais intransigentes. Mas esse era o fascínio, falava-me de coisas que ninguém mais falava ou que poucos homens tinham coragem de falar. Quanta falta me faz!

Para uns, ele era intransigente, para outros, conservador, ainda havia aqueles que o consideravam um homem desconectado dos tempos atuais. Mas, para mim, filho deste tempo, fruto desta época, conectado a esta geração, tinha-o como referência. Seus ensinamentos ressoavam em minha consciência e prática de vida como se fosse um escotismo de outrora. Falava-me do que eu queria ser e lembrava-me do que eu não era.

Mesmo longe, escuto sua voz firme, seus olhos azuis brilhantes, quando não lagrimejados, ao falar-me do maior ideal de sua vida: Jesus Cristo.

Quando o visitei, recordei aquele homem inteligente, erudito, altivo, decidido, de postura firme, que não transgredia quando o assunto era moral e agora, pela dinâmica da vida, tornar-se-ia refém de uma lápide.

Pensei: será que esta lápide teria força de enterrar e aprisionar tudo o que aprendi com ele? Não! Certamente não! Ela pode reter a corporeidade, as cinzas, o limite do humano, mas jamais sepultará a beleza de seus olhos, a comoção com que nos falava de Cristo, a ressurreição implantada no coração de tantos jovens.

A lápide que ele suporta não é maior do que aquilo que experimentamos, do que a tocante experiência que nos fez mudar. A lápide, assim como o que é humano, se decomporá na liturgia do tempo, mas o que recebemos dele, não.

Saudades deste amigo! Dos seus olhos azuis, de suas lágrimas, de seus ensinamentos, posições polêmicas e até mesmo de suas broncas. Fica-nos, então, a certeza da ressurreição!


Vilmar Dal-Bó Maccari

terça-feira, 12 de abril de 2011

Nos passos do Senhor dos Passos

Foto: Nos passos do dos passos

Como acontece desde 1766, no final de semana que antecede o Domingo de Ramos, as imagens do Senhor dos Passos e da Virgem das Dores ganham as ruas de Florianópolis e anunciam que a Páscoa está próxima. Tradicionalmente, este é um dos mais importantes eventos do calendário católico da cidade. Faz parte de sua história. Expressão de fé e devoção popular do povo da cidade que se enfileira e se acotovela em torno das ruas e praças para acompanhar a procissão e contemplar as imagens que passam.


Tudo é belo! Na verdade, de um ano para outro pouca coisa muda. O trajeto é o mesmo. A Irmandade segue costumeiramente engalanada com suas opas roxas. O que muda é que a cada ano um novo pregador é convidado para proferir o Sermão do Encontro na procissão de domingo à tarde. Esse sim, muda! Às vezes para melhor, outras para pior. Depende do pregador e dos ouvidos atentos dos fiéis. Isso em nada diminui a fé e a devoção ao Senhor dos Passos.


Tudo permanece igual: ao lado do senhor Arcebispo seguem o cortejo os políticos respaldados pelos resultados das urnas e autoridades públicas, e um pouco mais atrás, aqueles que não tiveram bons resultados, sentiram o amargor das urnas. Esta ordem no cortejo não é dogma de fé e pode alterar-se de quatro em quatro anos, conforme o sufrágio eleitoral. Alguns fazem cara de homens piedosos que se deixam conduzir pelas virtudes do cristianismo, outros, aproveitam para rever e acenar a seus eleitores e medir seu “IBOPE” no povo. Logo atrás, não somente atrás, mas ao lado e à frente, caminha o povo, tentando acreditar que elegeram um homem de fé.


Assim caminha o Senhor dos Passos e a Virgem das Dores: conduzidos em andores nos ombros de seus fiéis e devotos, alguns não tão devotos, mas que vivem e estão à busca de “votos”. O Senhor dos Passos caminha a passos lentos. Lentidão oportuna para, do alto de seu andor, ouvir as queixas de todos os que o acompanham: o trânsito caótico da cidade, a insegurança nas ruas, a corrupção institucionalizada, a moeda verde que se tornou moeda de barganha na denominada “casa do povo”.


O Senhor dos Passos escuta tudo a seu redor e aproveita este momento em que desfila pela cidade para divagar sobre novas possibilidades. Como a possibilidade de mudar seu translado e, quem sabe, visitar o povo do outro lado da ponte, o Continente. Mas para isso, precisaria contar com o metrô de superfície ou com os barcos russos prometidos para a travessia marítima. O Santo poderia, ainda, utilizar-se de um trajeto alternativo como a ponte Hercílio Luz, mas esta deveria estar concluída da sua longa e inacabável obra de restauração. Como nada aconteceu, e o trânsito nas duas pontes é por demais engarrafado, o Santo é forçado a continuar trilhando seu percurso tradicional. Dizem que até este já está tombado!


Assim é a vida, assim é a história, assim é a dor da Virgem das Dores que encontra seu Filho e seu povo em aflição. No encontro das imagens, Mãe e Filho chegam à mesma conclusão: pouco mudou! Mãe e Filho, juntos, voltam para seus altares. Um misto de alegria e sofrimento os acompanha: alegria em ver que a fé do povo não esmorece mesmo diante de tantos descasos; sofrimento, pois constatam que pouca coisa mudou da procissão dos anos anteriores, e não estão se referindo ao cerimonial litúrgico.


Mas a Virgem das Dores e o Senhor dos Passos não se deixam por vencer, sabem muito bem que no próximo ano eles voltarão às ruas, carregados pelos braços do povo, e cultivam a esperança de verem algo de novo. Identificam-se com a sabedoria popular: “A esperança é a última que morre”. E é mesmo!


Invoquemos confiantes a Virgem das Dores e o Senhor dos Passos, para que aliviem nossas dores e acompanhem nossos passos.


Vilmar Dal-Bó Maccari

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Meu conselho é que você seja feliz

Foto: cruz quaresmal

Aconselho que neste período de quaresma abstenha-se de carne nos dias recomendados pela Igreja segundo a tradição, mas aconselho que reflita a fragilidade da carne, os espinhos que tocam a sua carne, e às vezes em que você sacrificou a carne do “outro” para defender a sua própria carne. Aconselho que se abstenha de carne.


Aconselho que aproveite este tempo de quaresma, tempo oportuno de recolhimento e silêncio, para silenciar o coração. Dance menos, fale menos, faça menos barulho e desta forma aproveite para ouvir mais. Aprenda a observar com maior perspicácia, seja mais ouvidos. Aconselho a silenciar.


Aconselho que ao participar das celebrações litúrgicas durante a quaresma bata menos palmas, cante mais baixo e aproveite para aplaudir aqueles que vivem no anonimato da vida e dificilmente recebem aplausos e elogios: empregados, jardineiros, porteiros, gente simples. Pessoas que recebem muitas ordens em tom elevado de voz e poucos aplausos. Aconselho que bata menos palmas.


Aconselho que na quaresma intensifique sua vida de oração, mas aconselho que reze pelos muçulmanos, pelos judeus, pelos anglicanos, pelos protestantes, pelos irmãos de outras denominações religiosas. Aconselho que reze pela unidade dos cristãos e dos povos. Aconselho que intensifique suas orações.


Aconselho que nesta quaresma faça uma revisão de vida, mas aconselho que mude de atitudes, inove, aprenda algo novo, conheça pessoas novas, amplie seus relacionamentos, aprofunde os já existentes. Aconselho que revise sua vida.


Aconselho que neste período de quaresma, tempo oportuno de conversão, procure o sacramento da confissão, reconcilie-se consigo mesmo, com Deus e com os “outros”, mas aconselho que procure ser mais educado, verdadeiro e honesto em suas relações e não espere a quaresma para pedir desculpas. Aconselho que se confesse.


Aconselho nesta quaresma que faça jejum, mas aconselho que faça jejum da língua, da calúnia, da fofoca e da inveja. Aconselho que faça jejum. Aconselho que participe das celebrações da Semana Santa (Quinta feira santa da Ceia do Senhor, Sexta-Feira da Paixão, Sábado de Aleluia, Domingo da Páscoa do Senhor), mas aconselho que deseje Feliz Páscoa para seus funcionários, empregados, vizinhos e amigos.


Aconselho que participe das celebrações da Semana Santa. Aconselho que no dia de Páscoa coma um delicioso ovo de chocolate, mas aconselho que doe um ovo de chocolate para alguém que não pode comprá-lo. Aconselho que coma chocolate.


Aconselho que no dia de Páscoa prepare um delicioso almoço, que vá a um bom restaurante, mas aconselho que faça uma oração antes da refeição. Aconselho que coma bem.


Estes são meus conselhos de quaresma. Lembre-se, meu conselho é para vê-lo feliz.


Feliz quaresma, sem muito agito, sem muito barulho, mas repleta de sentido. Meu conselho é para vê-lo feliz!


Vilmar Dal-Bó Maccari

terça-feira, 22 de março de 2011

O ser humano em busca de identidade

Foto: Identidade


“Deus criou o homem e a mulher
à sua imagem e semelhança” (Gn 1, 26-27).


A Declaração dos Direitos Humanos da ONU em seu primeiro artigo afirma a dignidade das pessoas: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Considera-o algo evidente.

Segundo Brakemeier, professor e teólogo luterano, a Declaração tem em altíssimo apreço o gênero humano, porém lhe falta o apoio de valores culturais, filosóficos e religiosos para sustentar o que é o homem. No fundo, a dignidade humana não pode ser demonstrada racional ou empiricamente.

O ser humano é projeto antropológico. Nasce iniciado, mas não concluído. Há soluções políticas, econômicas, científicas e tecnológicas que tentam explicar que é o homem mas, o ser humano não se satisfaz em desempenhar o papel de uma máquina a ser desvendada ou de um cadáver a ser dissecado. O homem busca um referencial teórico que lhe assegure a dignidade. Para isso, o ser humano afirma-se como solução humana. Quer ser gente!

Na condição de gente e não de máquina ou de especulação técnico-científica, o ser humano busca na origem de sua natureza o sentido original e originante de sua existência. O pressuposto de tudo é o reconhecimento e a afirmação de sua dignidade enquanto pessoa, independentemente de condição social, racial, sexual ou outra. A identidade pessoal do humano almeja captar o significado mais profundo e complexo do que é o homem.

Aos olhos da fé cristã, a antropologia teológica frisa a dignificação do ser humano, dar-lhe uma acepção de valores como premissas indispensáveis na construção e afirmação de sua identidade pessoal. Neste sentido, o sagrado desempenha papel decisivo para a dignificação humana: o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, e é esta a sua identidade.

Nos entraves da vida, quando surgirem incertezas e bater a crise de identidade somos estimulados a recorrer aos divãs para redescobrir quem somos. Que tal buscarmos a mais originante, divina e digna resposta revelada ao ser humano? Somos imagem e semelhança de Deus. Esta é nossa a identidade!

O que significa isso? Significa que devemos voltar aos divãs da vida e recordar o que nos fez ou faz obscurecer o sentido fundamental de nossa identidade.


Vilmar Dal-Bó Maccari

quarta-feira, 9 de março de 2011

Eu e meus Anônimos


Foto: Eu anônimo
Existem anônimos pela simplicidade;
Existem anônimos pela discrição;
Existem anônimos pela humildade;
Existem anônimos pela proteção;
Existem anônimos pela vergonha;
Existem anônimos pela incerteza;
Existem anônimos pela insegurança;
Existem anônimos pelo medo;
Existem anônimos pelo erro;
Existem anônimos pela falsidade;
Existem anônimos pela covardia;

O anônimo pode “ser” como pode “não ser”!
Cada um sabe até que ponto vai o seu anonimato. Ninguém é anônimo a si mesmo! Até onde vai o seu anonimato?

Vilmar Dal-Bó Maccari

domingo, 27 de fevereiro de 2011

É preciso gritar: vem para fora!

Foto: Ressurreição de Lázaro
Jesus gritou bem forte: “Lázaro, vem para fora” (Jo 11, 43).

João nos narra em seu Evangelho (Jo, 11) a morte de Lázaro, irmão de Marta e Maria, amigos de Jesus. Quando chegou ao local em que Lázaro fora sepultado e viu Maria e todos os que estavam com ela chorando, Jesus se emocionou profundamente e chorou a morte de seu amigo. Os judeus que estavam presentes murmuravam entre si: “Vede como ele o amava’’ (Jo 11, 43). Maria lançou-se aos pés de Jesus e disse: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido” (Jo 11,32). Com lágrimas nos olhos, Jesus caminhou em direção do sepulcro e disse: “Tirai a pedra!’’ ( Jo 11, 36). E Jesus gritou bem forte: “Lázaro, vem para fora” ( Jo 11, 43). E o morto saiu do sepulcro.

Cada vez que leio este Evangelho fico maravilhado com a extensão da humanidade de Jesus e me surpreendo como a nossa humanidade se identifica com a dele. É impressionante sabermos que Jesus chorou a morte de um amigo e se compadeceu com a dor e os sentimentos de tristeza e perda da família de Lázaro. Ele sentiu os mesmos sentimentos que nós sentimos quando perdemos alguém que amamos: um sentimento de vazio, de saudade, de solidão. A experiência do confronto entre o divino e o humano, o tempo e a eternidade.


Jesus derramou suas lágrimas pela morte de um amigo amado, mas também comoveu-se com as lágrimas de dor de Maria e Marta que tinham enterrado o irmão amado. As lágrimas de Jesus confundem-se com as lágrimas de quem ama. Não tenho dúvida em afirmar que quando nossas lágrimas caem, as lágrimas dele se confundem com as nossas e é por isso que, quando superamos nossas dores, é com o sorriso dele que sorrimos. Então as lágrimas de Jesus, derramadas por Lázaro, de certa forma também foram as nossas: com ele todos choramos e todos sorrimos, com ele todos morremos e com ele todos ressuscitamos.


Tenho alguns amigos que são para mim verdadeiros ‘’Lázaros’’. Pessoas que amo, por quem derramo minhas lágrimas no sofrimento, empresto meus ouvidos para os momentos de desabafo e coloco meus ombros à disposição para que sirvam de sepulcro e possam inclinar a cabeça em momentos difíceis. Amigos ‘’Lázaros’’ que estão vivendo suas crises pessoais: desacreditados do trabalho, dos relacionamentos, do amor, enfim, da vida. Cada vez que encontro esses “Lázaros’’ tento rolar a pedra do sepulcro que os aprisiona. Mas, enquanto a pedra não for removida, por mais que me esforce, eles não conseguirão ouvir meu grito forte: “Lázaro, vem para fora”. Vem para vida! Recomeça! Sai desta crise paralisante.


Existe um ‘’Lázaro’’ muito especial para mim, de quem admiro o caráter, a retidão, inteligência e fé, que nos últimos meses vem sofrendo muito com os enfrentamentos da vida. Cada vez que conversamos sobre suas culpas e dores, o passado vem à tona no presente da vida e prejudica suas ações futuras. A cada conversa não me canso de gritar forte para esse amigo: ‘’Vem para fora”. Rola a pedra que o prende, esquece o que passou, liberta-te de pensamentos que não mais te pertencem, concede “alforria’’ a ti mesmo, aos teus sentimentos. Inclusive, a quem já te “alforriou’’ e tu insistes em manter preso nas algemas dos teus sentimentos de culpa e fracasso. Não te atenhas aos que te fizeram sofrer, que não compreenderam teu amor, liga-te aos que ‘’murmuram’’ em teu favor: “Veja como eles o amam”. Às vezes, tenho a impressão de que esse meu amigo “Lázaro” se acostumou com a sepultura e com os sentimentos de pena e compaixão dos que estão à sua volta, e se esqueceu de ressuscitar.

Jesus amava Lázaro como amo a este amigo, e não desistirei dele como Jesus não desistiu de Lázaro e, sempre que me deixar, gritarei cada vez mais forte: Lázaro, Lázaro, vem para fora! Vem para a vida. Ressuscita! Olha a beleza, as pessoas que estão à tua volta. Acredita em tua capacidade, no teu caráter, na tua beleza, em tua fé. Não te contentes, amigo, com o sepulcro úmido, escuro e sem vida. Principalmente, não te amarres aos construtores do sepulcro, mas sim, àqueles que tentam ajudar-te a rolar a pedra.


Amigo “Lázaro’’, vem para fora! Queremos parar de chorar. Ouve nosso grito. Escolhe a ressurreição. Mas se, por acaso, escolheres permanecer no sepulcro, saibas que estarei aqui, do outro lado, onde a vida acontece, gritando a Deus por ti: “Lázaro, vem para fora”.



Vilmar Dal-Bó Maccari