terça-feira, 26 de outubro de 2010

Ideal de suas vidas

Foto: Missa no CAP - 2009

“Eu desejo profundamente que vocês façam D’Ele o ideal de suas vidas.”
Monsenhor Francisco de Sales Bianchini

Durante trinta e quatro anos de sua vida, Monsenhor Francisco de Sales Bianchini esteve à frente do Movimento de Emaús na Arquidiocese de Florianópolis. Uma vida dedicada à exigente evangelização da juventude e de seus familiares. Sempre envolvido em cursos e retiros, quando concluía suas palestras com os olhos cheios de lágrimas, Monsenhor Bianchini costumava dizer: “Eu desejo profundamente que vocês façam D’Ele (Jesus) o ideal de suas vidas.”

Ao longo destes anos, aproximadamente 8.000 jovens, onde me incluo, tiveram a oportunidade de ouvir e aprender com seus ensinamentos. Pelos bancos do curso de Emaús passaram inúmeros jovens: jovens universitários, jovens simples, trabalhadores, estagiários, filhos de governadores, ateus, crentes e descrentes. Diferentes jovens, diferentes perspectivas de vida, mas uma mesma reação: a emoção e a comoção que sentiam ao ouvirem Monsenhor Bianchini de forma tão realista, como se fosse testemunha ocular, narrar a vida de Jesus Cristo. Era difícil conter as lágrimas neste momento de encontro. Padre Bianchini nos atraía com sua emoção e nos levava para dentro do Evangelho.

Homem culto, de voz forte e posições firmes, não transgredia quando o assunto era moral, mas, se “derretia” todo quando fala sobre o amor de Deus.

Aprendi muitas coisas com Monsenhor Bianchini: ter fé firme e não esmorecer, buscar argumentos sólidos que sustentem a minha fé, não ser persuadido por doutrinas incompletas, o respeito pela Eucaristia, evitar participar da Missa de bermuda, ter uma vida saudável e equilibrada, aproximar-se do Sacramento da Reconciliação, valorizar e respeitar os amigos tecendo uma rede de relacionamentos saudáveis.

É claro que tínhamos alguns pontos em que discordávamos, principalmente na eclesiologia e em alguns fundamentos da teologia latino americana, mas, meu respeito por seu legado sempre foi maior do que minha discordância.

A atual geração de Florianópolis tem muito a agradecer ao Monsenhor Bianchini: não andamos 1 km nesta cidade sem cruzarmos com alguém que o conheça e tenha uma lembrança sua, seja uma homilia polêmica, uma “bronca”, uma palestra inesquecível, ou que participou do curso de Emaús.

A cidade de Florianópolis entrega a Deus um brusquense agraciado com o Título de Cidadão Florianopolitano, honrado com a Medalha Anita Garibaldi pelos bens que prestou à sociedade na evangelização da juventude. Mas seu maior reconhecimento será por ter cumprido fielmente o seu papel na terra: fazer de Jesus o ideal de muitos Jovens.

Monsenhor Bianchini costumava dizer que todos os dias, pela manhã, lhe vinham dois sentimentos: o primeiro de agradecimento por tudo que Deus lhe deu: vocação, saúde, casa, amigos e os jovens e, o segundo, o medo de não ter correspondido à altura.

Jamais conseguiremos pagar tudo aquilo que Monsenhor Bianchini nos fez na gratuidade. Talvez, possamos continuar zelando por seu carisma: “Que os jovens façam de Jesus o ideal de suas vidas.

Obrigado, Monsenhor Bianchini!
Adeus até DEUS!

Vilmar Dal-Bó Maccari

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Manjedoura urbana: a hospedaria do abandono

Foto: Faces de uma mesma história

“Envolveu-o em panos e o deitou numa manjedoura,
pois não haviam encontrado lugar na hospedaria.”
(Lc. 2,7).

Lucas, em seus Evangelho da Infância, descreve com muita riqueza de detalhes o mistério da encarnação e o nascimento do menino Jesus. Comumente estes textos referentes à anunciação e ao nascimento do menino Jesus são meditados e rezados pela Igreja no tempo litúrgico do advento que, de forma pedagógica e doutrinal, preparam os cristãos para a festa do Natal: a chegada do menino Deus entre nós.

A grandeza e a mística que percorrem esses textos, porém, não se esgotam nas semanas que antecedem o Natal. Cada vez que meditamos o nascimento do menino Jesus, qualquer que seja a época do ano, nos defrontamos com um dos mais belos e complexos mistérios da vida cristã: Deus armou sua tenda e veio habitar entre nós. É a salvação, o amor, a misericórdia e a justiça que entram na história, no tempo e no espaço. O divino assume a condição humana e, na noite de Natal, Deus se revela de maneira pobre, em uma pobre gruta, num pobre menino: no menino de Nazaré encontramos a face humilde de Deus revelada à humanidade.

Essa compreensão, num primeiro momento, pode até parecer pura especulação teológica com certas doses de ideologia e até mesmo esvaziar alguns elementos históricos para a prática da vida espiritual orante, mas, se ousarmos alargar os horizontes de nossa compreensão, perceberemos que a condição divino-humana assumida na noite do Natal se atualiza a cada dia no concreto da vida; e que a estrela que guiou os Reis Magos até a gruta de Belém, continua guiando-nos até os pobres de nosso tempo.

Nos grandes centros urbanos existem inúmeras grutas pobres de Belém: orfanatos, abrigos, casas de acolhimento e creches. Todas abarrotadas de crianças abandonadas, sem muita infra-estrutura e carentes pela falta de recursos e apoios, mas, mesmo assim, na pobreza de Belém, são sempre solícitas em acolher um pequeno abandonado quando este bate à sua porta. Ali se encontram meninos e meninas pobres envoltos em panos, crianças que não conseguiram encontrar lugar em uma hospedaria familiar, um direito de toda criança. A estas sobrou a manjedoura de Belém.

São filhos de “Marias”: Maria das Dores, Maria Mãe Solteira, Maria da Aflição, Maria do Abandono, Maria do Desemprego, Maria da Droga, Maria da Prostituição, Maria do HIV, Maria que está no Céu. Filhos de “Josés”: José Operário, José Desempregado, José Carcerário, José Fugitivo, José Assassinado, José Alcoólatra, José Falecido.

Estas grutas de Belém estão lotadas de meninos não-Deus, mas de meninos filhos de Deus, que esperam por uma estrela do Oriente que conduza até eles bondosos e acolhedores Reis Magos. Não esperam ouro, incenso e mirra, muito menos vídeos-game, bicicletas e computadores: aguardam um lar, uma família, uma Maria de Nazaré, um José justo e virtuoso. São crianças nascidas na história, vítimas da história, presentes no tempo e no espaço.

O presépio de Belém é a realidade de nossas casas de adoção. Não precisamos esperar o Advento, montar o presépio, acender as luzes da árvore de Natal para sentirmos o espírito natalino. O presépio real acontece a cada dia. Inúmeras estrelas do Oriente apontam para esta situação de abandono. Não precisamos esperar o dia 25 de dezembro para mergulharmos na mística do Natal: é natal todo dia nas grutas urbanas de Belém.

Vilmar Dal-Bó Maccari

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Orelhinhas-de-burro: o bolinho do amor

Foto: Medida certa
Carrego comigo a permanente lembrança de idosa e piedosa senhora que despertava todos os dias logo ao nascer do sol, inclusive nos domingos, feriados e dias santos para preparar “orelhinhas-de-burro”, espécie de bolinhos de chuva fritos, ideal para o café da manhã. Os ingredientes da receita eram muito simples: algumas medidas de trigo, açúcar e água, tudo bem misturado, amassado, fritos em óleo quente e passados na canela com açúcar. Mesmo sendo uma receita de tamanha simplicidade, as “orelhinhas-de-burro” eram muito saborosas. Toda gordura absorvida no processo de fritura era cuidadosamente escorrida de forma artesanal em pedaços de papel-presente ou em sacos de pães vazios. Os guardanapos, sinal da modernidade, não tinham alcançado o processo de preparo.


Dado o devido reconhecimento ao delicioso sabor das “orelhinhas-de-burro” é impossível não recordá-las sem lembrar-se de outros sabores e sentimentos que as impregnavam. Comer aqueles bolinhos era mais do que deliciar-se com o gosto da canela enxertada no trigo, umedecida no óleo, mas sentir tudo o que ele simbolizava. Era a demonstração pura de carinho e dedicação de quem se punha a servir preocupada com a satisfação e o prazer do outro. Um gesto de pontualidade e compromisso materno, garantia de mesa posta e acolhedora: um mimo constante.


Aqueles bolinhos não eram frutos de uma obrigação, mas de um gesto concreto de amor. Amor não platônico, reduzido aos beijos, elogios e afagos, mas amor concreto, comprometido, permanente e gratuito. Amor que alimenta, testemunha e sustenta a alma.

A beleza da espiritualidade é esta: perceber no cotidiano da vida os sinais de Deus agindo no concreto da vida. É no humano das pessoas que experimentamos Deus atuando em nosso favor. Somente mãos generosas, conduzidas por nobres virtudes e sentimentos de tamanha proporção são capazes de transformar trigo, açúcar e água em bolinhos repletos de amor.

Fazer “orelhinhas-de-burro” em situações eventuais, seguindo as medidas da receita é muito prático e, com o mínimo de instrução, qualquer pessoa consegue prepará-los. Porém, fazer “orelhinhas-de-burro”, diariamente, na gratuidade, seja inverno ou verão, pensando no sustento do outro, permitindo-lhe uma refeição com novidade e que atenda ao paladar de quem o degusta é muito mais do que fazer bolinhos: é amar fazendo bolinhos.

Quando somos conduzidos pelo amor de Deus e deixamo-lo conduzir nossa rotina, amamos fazendo e fazemos amando. Assim deve ser a nossa espiritualidade, a espiritualidade da santificação. Somos santos não porque fizemos bolinhos perfeitos seguindo fielmente as receitas, as normas e as leis, mas, somos santos porque fizemos bolinhos com carinho, com amor, preocupados com o bem-estar e com o propósito de saciar a fome do outro. Essa prática de amor, por sua vez, não invalida as receitas, as normas e as leis, mas nos ensina que bolinhos sem amor são apenas bolinhos.


Esta senhora idosa e piedosa deixou-me a receita das “orelhinhas-de-burro”, mas, acima de tudo, uma receita de amor. Ainda que estejamos famintos na saudade, e desorientados nas medidas de trigo, açúcar e água, sabemos que a consistência, “ponto”, “liga” para nossa massa nascem do amor, somente do amor, e este nos saciará.


Vilmar Dal-Bó Maccari

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Faz tempestade: chove lá fora

Foto: nervosismo

Diz um velho ditado popular: “Depois da tempestade sempre vem a bonança”. Com base neste sábio dito popular, tomo a liberdade de complementá-lo: “Depois da tempestade sempre vem a cbonança e, com ela, o sentimento de alívio”.

Em tempo de tempestade somos lançados nas turbulências da vida, deparamo-nos com as nossas inseguranças, fragilidades e incertezas: somos tomados pelos mais íntimos sentimentos de medo e abandono. É durante a tempestade que imaginamos submergir nos problemas e nas situações aparentemente desalentadoras. Por mais que tenhamos consistência e estrutura emocional, intelectual e espiritual para enfrentarmos e atravessarmos as tempestades da vida, esta sempre desnudará algumas de nossas fragilidades humanas: chove lá fora e se faz tempestade em nosso interior. As turbulências externas provocam uma verdadeira tempestade interior, são os momentos denominados de crises, provações, desafios e, para os místicos, as chamadas “noites escuras”. Não há como prever o tempo e o período de chegada da tempestade. O certo, porém, é que todos, mais cedo ou mais tarde, com maior ou menor intensidade, passaram por ela na vida. Relatos de santos com São João da Cruz e Madre Teresa de Calcutá revelam períodos de “noites escuras” em suas vidas durante intensa busca de perfeição e santidade vivida na caridade e na contemplação. O ser humano experimenta o limite da turbulência na condição de viver.

Voltando ao sábio dito popular: este nos ensina que, após a tempestade, sempre vem a bonança. O que vem a ser esta bonança? Seria o silêncio compassivo de aceitação da derrota diante das turbulências da vida? Ou, quem sabe, o acomodamento, a inércia e o escondimento para não enfrentar uma nova crise? Não! O tempo de calmaria nada tem a ver com desolação, aceitação do fracasso, desânimo, conformismo ou estagnação perante as provações.

Bonança é a certeza de um porto seguro, de uma maré tranqüila, e de uma terra firme para aqueles que perseverarem nos embates da vida. É o sentimento do dever cumprido e a consciência tranqüila por todo empenho humano em contornar os percalços da vida. Calmaria é o tempo que apazigua os sentimentos de medo, saudade e abandono. Faz-nos olhar os problemas da vida sob uma nova ótica. Somente passando pelas tribulações, enfrentando as tempestades e encarando a realidade podemos de fato compreender o estado de bonança, paz.
Talvez seja muito parecido com o sentimento do Apóstolo Paulo quando nos fala: “Combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé; agora está reservada para mim a coroa da justiça” (2Tm 4,7). Quando enfrentamos os nossos problemas com dignidade, esgotamos todas as alternativas de soluções e buscamos humildemente ajuda para resolvê-los, gozando de paciência e equilíbrio sem cairmos nas amarras da revolta e do distanciamento de Deus e das pessoas, mesmo que não consigamos resolvê-los imediatamente, a nós é reservada a coroa da bonança: um tempo de paz, equilíbrio e segurança.
Quando vivemos este tempo de bonança, tempo de certeza e convicção de que tudo foi feito para superar as tempestades da vida: mesmo que chova lá fora, dentro de nós brilhará o sol, porque estamos repletos da sensação de alívio. Quem enfrenta seus problemas com maturidade atravessa as tempestades com equilíbrio, e busca fazer das crises um momento de aprendizado e crescimento sem revoltas, receberá indissoluvelmente a coroa da paz. Assim foi com São Paulo, com São João da Cruz e com Teresa de Calcutá e, sem dúvidas, será com todos aqueles que não esmorecerem em seus desafios, completarem a corrida e guardarem a fé. Aqueles que perseverarem, mesmo que chova lá fora, serão agraciados e aquecidos pelo sol do alívio e da paz.

Vilmar Dal-Bó Maccari