domingo, 16 de outubro de 2011

A humildade que se alcança


Foto: Fina Estampa

A minha vida nunca foi marcada pela fome e pela miséria. Não conheci a despensa de minha casa vazia e nem tive a pobreza como companhia, pelo contrário, prato cheio e roupas boas até mesmo nos momentos mais difíceis de crise sempre me acompanharam. Porém, isso não significa dizer que não passei diversas vezes por restrições e carências, amarguras e abatimentos, revoltos e sofrimentos. Trilhei por diversas vezes o caminho da desolação e da pobreza mesmo que ainda de “barriga cheia”.

Nestes últimos dias tenho refletido profundamente o valor da restrição. Tudo aquilo que nos restringe e nos faz ser menos ou quem sabe mais do que somos. As restrições a primeiro momento podem parecer-nos um processo de castração, aniquilamento, tudo aquilo que restringe a possibilidade humana. O homem restringido é um homem não realizado. Mas, por sua vez, a restrição é sempre uma prova de superação para o próprio homem. Como lidar, acontecer, realizar diante das restrições impostas pela vida? Como sorver a vida a partir das restrições? Qual homem não está sujeito as restrições como: força, fadiga, sofrimento, doença, morte. As restrições fazem parte do limite humano e o próprio homem se torna limite na sua condição humana. O humano por si é um acontecimento restrito.

Lidar com a restrição, com o limite, com a sobra é uma tarefa arda, porém, necessária. É essa aridez a possibilidade mais fecunda de uma experiência humanizadora e humanizante. Humanizar-se é sempre um processo penoso e necessário.

Certa vez estava me preparando para uma consulta médica, escolhi a melhor roupa do guarda-roupa: calça, camisa, meia, sapatos. Depois de devidamente arrumado e perfumado fui ao espelho verificar se tudo estava de acordo, ali então, transpareceu uma realidade que até então não tinha percebido. A calça que vestia a camisa, a meia e os sapatos que calçava eram doações que recebi de primos meus. Naquele mesmo instante abri o guarda-roupa e tomei consciência que muitas das minhas roupas que ali estavam eram doações de familiares. Roupas que se tornaram restritas para outras pessoas; pequenas, fora de moda, surradas, ou até mesmo desnecessárias pelo excesso, fato da restrição de outros que se convertia a meu favor e supria a minha carência. Este, por mais banal que seja, é um sutil exemplo que as restrições dos outros quando encarada de forma sóbera e não provocativa podem nos fazer bem.

Nesta experiência por mais simples que possa ser ela ganha um valor pedagógico imenso quando observada aos olhos da humildade. Utilizar uma roupa herdada de outro, ainda que não a necessite, é um exercício de humildade, esvaziamento, acolhimento. Tanto para quem doa quanto para quem recebe. Expõe a realidade que somos finitos, passageiros, restritos. Por contra partida, pessoas que sentem dificuldades e vergonha em utilizar uma peça de roupa doada e encaram isso como um ato de humilhação ou decadência, é bem possível que estas mesmas pessoas vivam segundo a ordem de uma “barriga cheia” e um coração vazio. Esvaziar a barriga, sentir fome e viver de vida sobrea em alguns momentos da vida é muito pedagógico. Faz-nos pensar que os trajes de festas são passageiros, assim como o homem, e que em algum momento a aventura da vida deixará de ser possível. O que usamos pouco importará, mas sim, o sentido que damos a aquilo que usamos. Agradeço as roupas ganhadas, surradas, selecionadas que recebo de meus primos. São estas roupas e estas pessoas que me oportunizam a exercitar diariamente a humildade cada vez que me olho no espelho. Recordo que sou restrito e carrego comigo um pouco da restrição do outro. É de fato a humildade que me alcança e eu que me deixo alcançar.