Quando Jesus revelou na última ceia o desígnio de traição: “Um dentre vós me trairá” (Jo
13, 21), fez de forma tão pedagógica a ponto de não delatar e
pronunciar o nome de Judas, pois bem sabia que, se revelasse
publicamente o nome do traidor, a ceia poderia terminar em um “linchamento”
público. Certamente se, naquela hora, Jesus tivesse revelado o desígnio
de traição implantado pelo diabo no coração e na mente de Judas
pronunciando o seu nome, seus amigos discípulos não o perdoariam e
partiriam para a agressão física; a Ceia do amor tornar-se-ia a ceia do “acerto de contas”.
Todos tinham fixos na mente que Jesus seria o novo Rei de Israel e,
desta forma, tudo fariam para impedir aquele que ousasse contrariar os
planos de poder. Os evangelhos narram, inclusive, que andavam armados.
Disse Jesus: “Pedro, guarda a tua espada” (Jo 18,11). Jesus quando revelou a traição teve a sutileza de fazê-lo com um gesto: o gesto de dar o pão ao que haveria de traí-lo: “Ao que eu der o pedaço de pão molhado” (Jo13,26).
A
narração deixa claro que Jesus não falou diretamente aos Doze que Judas
seria o discípulo símbolo da traição e da corrupção humanas. Não
revelou publicamente seu nome, para dar-lhe, quem sabe, uma
possibilidade de evitar um mal maior. Porém, a decisão de Judas foi
respeitada: “Faz o que deves fazer” (Jo 13,27). Como quem diz: Judas,
a tua liberdade será preservada; não sou o Deus da manipulação, da
opressão; sou o Deus da liberdade, que respeita as decisões humanas. Faz
o que deves fazer! E na liberdade, Judas escolheu livremente
entregar Jesus ao governo romano e ao poder religioso de Jerusalém pela
quantia de trinta moedas de prata. O respeito de
Jesus perante a decisão de Judas é uma prova da sacralidade da
consciência e da liberdade do homem perante Deus. Deus respeita a
liberdade humana, suas escolhas ao ponto de não interferir mesmo quando
ela coloca seu Filho diante da morte.
A liberdade nos permite acertar e errar. Na liberdade, Pedro disse: “Senhor, tu sabes que eu te amo”. Na
liberdade Judas vendeu Jesus por trinta moedas. A liberdade, por si só,
pode ser um caminho de encontro e desencontro. Somente o bom uso da
liberdade humana pode assegurar a dignidade e o equilíbrio da vida que é
repleta de possibilidades e convites. Diz Paulo: “Tudo posso, mas nem tudo me convém”, ensinando-nos que nem todas as possibilidades levam ao bem.
O bom uso da liberdade já foi tema de discursos eloqüentes de filósofos, teólogos, moralistas, crentes e ateus. Diferentes
pontos de vista, diversas opiniões, mas uma coisa em comum: a
contribuição fundamental da Ética, da Moral e do Direito para o bom
exercício da liberdade. Contribuição que ilumina o agir humano naquilo
que é certo ou errado, lícito ou ilícito, bem ou mal. Ainda que se
altere a gramática ou a forma conceitual das palavras para expressar o
exercício da liberdade e sua finalidade, uma coisa é certa: os valores
morais e éticos são o sustento daqueles que se propõem viver segundo um
ideal maior.
Aos
cristãos, homens identificados com Jesus de Nazaré, cabe sintonizar os
passos com os passos de Jesus, ou seja, com a ética cristã. Ética
norteada pela fé, palavras e gestos de Jesus. É o agir cristão no mundo.
Com base no agir ético e moral é que os cristãos se fazem reconhecer. A
ética cristã não está baseada nos limites paroquiais, mas sim, nas
atitudes e nas decisões que os cristãos tomam nos embates da vida.
Dentro e fora da igreja. É na vida que o agir ético e moral é provado. É
no dia a dia que revelamos nossa opção fundamental, onde estão fundados
nossos passos, nossas escolhas e decisões. Um bom cristão faz isso tudo
a partir do testemunho da fé em Jesus.
Há quem diga que ser cristão dentro da sacristia é fácil, o difícil é ser cristão no mundo, onde cada vez mais impera a filosofia “quem pode mais chora menos”, dos valores segundo os ditames e mesuras da beleza
e da estética, do consumismo desenfreado, da corrupção pública e da
sexualidade banalizada. Assumir um ethos cristão como projeto de vida
não é nada fácil. Nunca foi! Não é à toa que tantos homens e mulheres ao
longo da história foram martirizados por causa da fé. Seguir um ethos
cristão hoje é assumir o martírio social; o bullying de ser taxado de “carola”,
“cabeça fraca”, “alienado”, “démodé”, “quadrado”, “ultrapassado”,
“doente”, “fora da casinha”, “viajão”, “santinho de pau oco”, “bonzinho
para outros verem”, entre tantos outros.
Dizia Monsenhor Francisco de Salles Bianchini: “Tirem
um líder religioso de uma comunidade e serão necessários dois policiais
a mais para vigiar e garantir a paz da comunidade”. Quando tiramos
os princípios que norteiam o agir humano de nossa cartilha de vida, a
vida sucumbe. Sucumbe nas relações familiares, afetivas, sociais,
profissionais. Sem princípios valorativos a família se torna um grupo de
convivência sem sustento, as relações afetivas relações de puro prazer
desmedido, e as relações sociais um jogo de oportunismo e vantagens.
Voltando
à última Ceia, vemos que a figura de Judas é um pouco a figura do mundo
frágil dos que se deixam seduzir por trinta moedas de prata. Dos que
vacilam em seus princípios diante de um champanhe importado, de uma
badalada festa, de uma roupa de marca, de um conchavo lucrativo, de uma
oportunidade profissional, de uma noite de sexo fácil. A liberdade pode
hoje ser corrompida por trinta moedas de prata, como no passado.
Perante
a esta realidade situa-se a importância de nortearmos nossa liberdade
com bons valores. Não somos juízes de condenação de ninguém. Todos nós
dependemos da misericórdia e da benevolência de Deus: Pedro, João,
Tiago, Judas, eu e você. Todos contamos com sua infinita misericórdia.
Assumir
um ethos cristão, um comportamento evangélico não é ficar apontando com
o dedo ríspido aos que não assumiram este projeto existencial como
propósito de vida. Pelo contrário, é dar testemunho e fazer-se um com
aqueles que não crêem por falta de testemunho.
Somos
barro, somos homens, somos trinta moedas de prata. Somos filhos, somos
criaturas, somos bons. Somos um acontecimento único! Somos dignidade!
Somos aquilo que trinta moedas de prata não compram. Somos filhos de
Deus!
Vilmar Dal Bó Maccari